Divórcio – A Salvação dos Casamentos Infelizes

“Há muitos anos, no Porto, depois de ouvir uma palestra de Sofia Mello Breyner no Colégio do Rosário onde ela foi aluna, ficámos a dialogar e alguém lhe perguntou porque escolhera a escrita. Respondeu que foi a única possibilidade, no seu tempo e no seu meio, de ultrapassar o âmbito de dona de casa, esposa e mãe de filhos. Bastava um lápis e um papel.” – Maria Humberta Santos

“Divórcio já, filhos ilegítimos não” –Cartaz do Movimento Nacional Pró-Divórcio de 1974

Quando decidi escrever esta crónica, a primeira imagem que me veio à cabeça foi aquela que aparece no meu manual de História do 9º ano, com a seguinte frase “Deus, Pátria e Família”. Na imagem está representa um homem, chefe de família que regressa a casa depois de um dia de trabalho, a mulher a preparar o jantar e os dois filhos. Uma imagem de propaganda do Estado Novo, representada como ideal.

Naquele tempo (entenda-se o regime de Salazar), o que Deus unia ninguém podia mesmo separar: casais que contraíssem matrimónio pela igreja, a grande maioria, ficariam juntos para sempre, independentemente da sua vontade. A possibilidade de divórcio pura e simplesmente não existia. Caros leitores, hoje é dia 15 de Fevereiro e há precisamente 44 anos atrás, o Estado Português, reconhecia o direito aos católicos casados, de se divorciarem, através da assinatura de um protocolo adicional à Concordata de 1940, com o Vaticano.

Estava-se em 1910 e vivia-se uma viragem na História do país: a implantação da República. Entre muitas mudanças de ordem social e política, o divórcio foi uma das medidas implementadas pelo então ministro da Justiça, Afonso Costa. Portugal foi o segundo país europeu a consagrar esta medida, a seguir à Noruega. A lei do divórcio foi promulgada a 3 de Novembro de 1910, como resposta ao problema dos filhos que nasciam das novas relações, e que, à luz da lei eram considerados ilegítimos. Os conjugues podiam requerer ao tribunal, a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio; os requisitos desse pedido assentavam num casamento que durasse há três anos e a idade mínima de 25 anos dos conjugues; exigia-se a formalização prévia de um acordo acerca do poder paternal e dos alimentos devidos aos filhos; o juiz concedia um divórcio provisório, que se convertia em divórcio definitivo passado um ano sobre a primeira decisão. O divórcio litigioso podia ser requerido sem que tivesse decorrido um período de duração do casamento, desde que ficasse provado o fundamento invocado.  A possibilidade de duas pessoas se divorciarem por mútuo acordo surgiu também em nome da liberalização dos costumes. Mas não durou muito tempo. Em 1926, com a queda da Primeira República, substituída pela Ditadura Militar e, subsequentemente pelo Estado Novo em 1933, Salazar, então Presidente do Conselho de Ministros, abafou os ventos de emancipação e elevou a família a símbolo de estabilidade. Na sequência desta alteração, surgiu a necessidade de reestabelecer as relações entre a Igreja e o Estado depois da Primeira República ter declarado a separação destas mesmas duas entidades. A Concordata de 1940 foi um documento reconhecido de direito internacional e o seu conteúdo estendeu-se ao domínio temporal e espiritual. O Artigo 24º dizia assim:

Em harmonia com as propriedades essenciais do casamento católico, entende-se que, pelo próprio facto da celebração do casamento canónico, os cônjugues renunciarão à faculdade civil de requererem o divórcio, que por isso não poderá ser aplicado pelos tribunais civis aos casamentos católicos.”

A separação judicial de pessoas e bens, que anulava deveres como o da coabitação dos cônjuges mas mantém o da fidelidade foi a porta que ficou aberta aos que, querendo divorciar-se, deixaram de o poder fazer.

Alguns terão esperado mais de três décadas para ver resolvido o seu divórcio, pois esta situação de indissolubilidade do casamento religioso perdurou na sociedade portuguesa até 1974. A proibição do divórcio esteve indelevelmente ligada àquilo que foi a condição da mulher durante este período. O ideal da mulher do Estado Novo projectou-se na imagem de Maria, mãe de Jesus, um modelo de mãe, esposa e dona de casa recatada. Foi criada uma hierarquia de género dentro do casamento que em nada beneficiou a mulher. Esta não deveria trabalhar fora de casa pois, se o fizesse, esse segundo ordenado viria ameaçar o domínio masculino na família. As mulheres casadas não podiam exercer actividades como o comércio, viajar para fora do país nem administrar bens se não tivessem o consentimento dos maridos. Complementada por legislação nacional, ficou vedada a possibilidade de divórcio a todos os que celebrassem casamento canónico. Muitos foram, os argumentos construídos que pretenderam convencer a mulher da inevitabilidade do seu lugar. E as relações extraconjugais? Bem, se fossem praticadas pelo homem não eram consideradas graves. Na década de 50 não se levava muito a mal que os maridos, mesmo aqueles que eram bem casados, tivessem “recaídas” pois tal facto era considerado como parte da sua natureza. As mulheres deveriam esse comportamento masculino, sem grandes dramas, como se a traição do marido estivesse devidamente enquadrada. Quando a traição partia da mulher, o caso mudava de figura. O abandono ou expulsão de casa eram atitudes compreendidas socialmente, se o marido estivesse disposto a reconciliar-se com a esposa adúltera, até o podia fazer, mas preferencialmente depois de a humilhar publicamente.

Foram muitas as mulheres forçadas à submissão de género, à dependência económica e afetiva. Mas, contrariando aquilo quer era norma também foram muitas outras que durante a década de sessenta trabalhavam fora de casa, ou por aspiração pessoal ou por necessidade. Foi o caso da minha avó materna. Enquanto casada, dependeu inteiramente do meu avô que, garantia o rendimento familiar. Quando surgiram desentendimentos, o meu avô saiu de casa para não voltar. De repente a minha avó viu-se sozinha com duas filhas. Saiu da casa onde até então tinha vivido e mudou-se para um quarto alugado. Arregaçou as mangas e começou a trabalhar como doméstica. Não sabia ler nem escrever mas não foi isso que a impediu de assegurar o seu sustento e das filhas. Isto aconteceu em 1966 e, enquanto não foi alterada a Concordata, o seu estado civil tinha a seguinte designação: “casada, separada de pessoas e bens”. A minha avó teve de esperar dez anos para conseguir adquirir o estado de divorciada. Foi uma libertação quando o alcançou.  

O Código Civil de 1966 resumia assim no seu artigo 1790º (Casamentos indissolúveis por divórcio) no Código Civil que especificava:

Não podem dissolver-se por divórcio os casamentos católicos celebrados desde 01 de agosto de 1940, nem tão-pouco os casamentos civis quando, a partir dessa data, tenha sido celebrado o casamento católico entre os mesmos conjugues”

E no artigo 1587º:

A lei civil reconhece valor e eficácia de casamento ao matrimónio católico”

Isto estipulou que mesmo os casados apenas pelo civil deixavam de poder divorciar-se por mútuo consentimento. Também eliminou o divórcio litigioso.

Não podendo as pessoas refazer a vida legalmente, faziam-no irregularmente. Tornaram-se correntes as situações de união livre, que eram consideradas adulterinas em relação a uma das partes e, por vezes, em relação às duas. Uma das mais importantes consequências deste estado de coisas foi a situação dos filhos: se o pai era casado com outra mulher, não podia perfilhar abertamente os filhos nascidos de uma nova união, considerada irregular. Não tinha sobre eles poder paternal, eles não usavam o seu nome de família. Se era a mãe que estava no estado de união com outro homem, que não o verdadeiro pai dos seus filhos, a situação era ainda pior, porque esses filhos presumiam-se serem filhos do marido, facto que este podia contestar. Estas crianças acabam por ser registadas como filhos de pai incógnito.

Quando chegou a década de 70, chegaram também as aspirações de mudança. Antes do 25 de abril foi constituído o Movimento pró-divórcio que teve como objetivo sensibilizar os católicos para a necessidade de exigir a revogação da Concordata e restabelecer o direito ao divórcio. Em junho de 1974, este movimento promoveu um comício no Pavilhão dos Desportos em Lisboa onde foi exigida a “libertação dos presos da Concordata”. A este comício seguiram-se numerosas ações reivindicativas que conseguiram por fim os seus objetivos. Foi lançada uma campanha de recolha de assinaturas, tendo sido recolhidas mais de cem mil mas, apenas 51 mil foram entregues no Palácio de Belém ao Presidente António de Spínola. O governo português acabou por enviar uma delegação à Santa em 1975, que renegociou a Concordata, anulando a cláusula que impedia o divórcio para os católicos. O ministro da Justiça de então, Salgado Zenha juntamente com o Cardeal Giovanni Villot, Secretário de Estado do Vaticano, concordaram em alterar o artigo 24º da Concordata a 15 de fevereiro de 1975, tendo sido posteriormente publicado em Diário da República, no dia 27 de maio do mesmo ano, o seguinte texto:

Sujeito à lei do Estado no que concerne aos efeitos, o casamento católico passará, portanto, a poder ser dissolvido nos tribunais civis, nos mesmos termos e com os mesmos fundamentos com que pode ser dissolvido um casamento civil

Segundos dados do Instituto Nacional de Estatística, só em 1975, houve 1552 divórcios. O número triplicou em 1976 e quintuplicou em 1977. De acordo com os historiadores, foi um fenómeno que aconteceu pelo facto dos casais católicos separados terem de esperar pela alteração. Isto deixa-me a pensar e seguramente aos leitores…no número de pessoas (homens e mulheres) que ficaram amarrados por uma cláusula legalista. A Lei de 17 de maio de 1975 passou a permitir o divórcio e restabeleceu o divórcio por mútuo consentimento que figurou no início da legislação da Primeira República. Em 1977 as alterações ao Código Civil foram mais profundas, pois tinham como objetivo adequar à Constituição de 1976: desapareceram da lei as figuras jurídicas mais discriminatórias em relação à mulher como, a do chefe de família e, estabeleceu-se que todas as decisões respeitantes à família passariam pelo acordo de ambos os conjugues. . Em 1995, foi aprovado o novo Código do Registo Civil que permitiu que o divórcio por mútuo consentimento fosse requerido e decidido nas Conservatórias do Registo Civil, se o casal não tivesse filhos menores ou, se os tivesse, o exercício do poder paternal já se achasse judicialmente regulado. Em 1998 foi suprimido o prazo de duração do casamento (que era de três anos) para poder ser pedido o divórcio por mútuo consentimento. Em 2001 o processo de divórcio por mútuo consentimento passou a ser da competência exclusiva das conservatórias do registo civil.

Em 18 de maio de 2004, a Concordata foi totalmente reformulada, dando lugar a uma nova assinada entre o Vaticano e a República Portuguesa.

Atualmente, os divórcios processam-se nas Conservatórias do Registo Civil e os custos cobrados variam consoante o tipo de separação. Se a separação acontecer por mútuo acordo, o processo é célere, o valor não é tão elevado exceto se, existirem partilha de bens. Os divórcios litigiosos são mais morosos e mais dispendiosos.

Não nos deixemos enganar. Às vezes ouvimos comentários do género “Isto já não é como antigamente, quando as pessoas se casavam e faziam o casamento durar”. Os casamentos duravam mas como ficamos a saber, muitos à custa de sacrifício e sofrimento. Neste processo as mulheres foram as mais crucificadas (não quero elevar a tocha do feminismo mas a História e as pessoas que fizeram parte dela não mentem). Estudos sustentam e testemunhos de vida reiteram que o casamento durante o Estado Novo foi a pior forma de domesticação e subordinação das mulheres. Eu digo que o divórcio foi o seu grito de salvação apesar de que, para muitas este processo de “saída do armário” ter sido vivido por muitas mulheres com angústia. Vivermos em sociedade implica estarmos rodeados de construções sociais e, durante o Estado Novo, isso estava enraizadamente definido. Cada um aceitava o papel que lhe era atribuído e, a maioria das mulheres eram ensinadas a acreditar que depois da dependência dos pais transitariam para a dependência dos maridos. É legítimo hoje, assumir que a proibição do divórcio no Estado Novo ajudou a construir a imagem de casamentos/famílias felizes (viviam apenas na aparência das coisas).

Atualmente, o divórcio é algo considerado comum e, segundo estudos realizados, em cada cem casamentos ocorrem setenta divórcios. O que dificulta por vezes a sua consolidação é a atuação dos seus intervenientes ou seja, quando um dos conjugues não aceita a separação para além dos gastos financeiros que este tipo de situações acarreta também pode causar danos psicológicos que se arrastam por estarem dependentes da vontade pessoal. Aquelas que decidem dar este passo por mútuo consentimento também não é fácil. É toda uma vida projetada em objetivos e sonhos que se desfaz, que se encerra. Mas o fim também significa um recomeço. E esse recomeço faz com que olhemos para dentro de nós e percebamos quem queremos ser na vida que se segue daí para a frente.