Eça de Queirós

Lá vai Eça, de livros e cadernos rabiscados debaixo do braço e de lápis e folhas enroladas no bolso, pelas ruas de uma Coimbra boémia e de ar carregado por ideologias e valores debatidos, inspirados e atirados por cada janela de café. Estaríamos no ano de 1861, era José Maria de Eça de Queirós, um jovem com bigode de pelos tenros e de espírito crítico latente.

Nascido na Póvoa de Varzim, a 25 novembro de 1845, filho de pai brasileiro de família perseguida pelos seus ideais liberais, e de mãe oriunda de uma outra de alta patente que imediatamente repudiou a união – o escândalo social teria estalado, caso não o tivessem registado como filho de ‘mãe incógnita’.

E assim começou a vida do pequeno Eça, de mão em mão e de casa em casa, levado primeiramente pela sua madrinha para Vila do Conde, onde ficou até aos seus quatro anos. Nesse período e depois da morte da sua avó materna, os seus pais casaram mas não o reconheceram como filho – sendo fruto de uma gravidez ocorrida antes do casamento, a vergonha falaria mais alto. Com isto, foi levado para Aveiro, ao cuidado de uma ama na casa dos avós paternos – onde teve acesso a episódios incestuosos descritos no diário da prima. Ali ficou até aos dez anos, altura em que perdeu os avós.

Terminou a infância na casa dos pais, juntamente com os seus seis irmãos e acabou os estudos no Colégio da Lapa, em 1861, onde foi aluno de Ramalho Ortigão.

De volta a Coimbra e ainda em 1861, Eça de Queirós, com dezasseis anos, matricula-se no curso de Direito e participa no Teatro Académico. Troteando sobre os paralelos ou sentado num qualquer café, Eça vibra a cada discurso literário acalorado por outros intelectuais de interesses similares, como Antero de Quental, de quem se tornaria amigo.

Mais tarde, em 1865, envolveu-se visceralmente n’ “A Questão Coimbrã”, com o grupo de futuros escritores e poetas [‘Geração de 70’] ao qual Eça pertencia. Este movimento gerou confronto com os ultrarromânticos do “bom senso e bom gosto”, contrapondo os defensores do status quo da época, ultrapassado em gerações e em relação à restante europa.

Quando terminou o curso em 1866, vai para Lisboa e incitado por Antero, Eça começou a escrever e a publicar os seus primeiros trabalhos e chegou a colaborar no ‘Gazeta de Portugal [artigos reunidos em ‘Prosas Bárbaras’], mantendo traços românticos mas abordando uma imagem mais ampla da sociedade portuguesa, criticando-a sob vários aspetos sobretudo a decadência dos valores morais.eca

Voltando sempre à Póvoa de Varzim a cada verão, Eça nunca mais abandonaria o jornalismo crítico, sendo fundador [‘O Distrito de Évora’, ‘Revista de Portugal’] e colaborador em vários jornais [‘Renascença’, ‘A Imprensa’, ‘Ribaltas e Gambiarras’, ‘Revista de Turismo’, ‘Feira da Ladra’].

Depois de visitar a Palestina, Síria e Egito, em 1869 e 1870, [notas de viagem para ‘A Relíquia’] pelo jornal ‘Diário Nacional’, Antero de Quental convida Eça para se reunir com um grupo informal de intelectuais de Lisboa [‘O Cenáculo’] e que debatiam, em tertúlias e saraus, ideias e assuntos políticos, sociais, das artes às ciências. Aqui se reencontrou com o seu professor Ramalho Ortigão. O grupo era maioritariamente o mesmo que o da altura d’ “A Questão Coimbrã” mas torna-se num serão de insultos contra todas as instituições portuguesas e seus ministros e escritores, Deus e o Universo. Foi ali que foi criado, por Eça, Antero e Batalha Reis, uma personagem exótica, culta, viajada, irreverente e que servia para desafiar a moral burguesa: o ‘poeta satânico’ [versos publicados no jornal ‘Revolução de Setembro’].

Em 1871, ocorrem as  ‘Conferências do Casino’ ou ‘Conferências Democráticas do Casino Lisbonense’, onde Eça de Queirós discursava a sua quarta conferência intitulada ‘A Nova Literatura’ ou ‘O Realismo como Expressão de Arte’, no Casino de Lisboa. Mais tarde, quando se preparavam para a sexta conferência, os participantes foram surpreendidos pela ilegalização da realização da mesma instaurada pelas autoridades, sob o pretexto de que ‘as preleções expõem e procuram sustentar doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições do Estado’.

farpasEm resposta a esta censura, Eça e Ramalho lançam o folheto mensal ‘As Farpas’, contendo sátiras à sociedade portuguesa e às suas instituições. Este conceito de jornalismo foi inovador, um jornalismo de ideias, de crítica social e cultural que se reflete até aos nossos dias.

Neste mesmo ano e ainda com a parceira de Ramalho Ortigão, escreveu a novela policial ‘O Mistério da Estrada de Sintra’, sob a forma de folhetins semanais para que parecessem cartas anónimas reais e que provocaram o entusiasmo no público. Foi nesta narrativa que Eça pode usar a personagem fictícia o ‘poeta satânico’, qua tanto tinha gostado.

Na cidade de Havana, em Cuba, Eça reúne material para escrever o ‘Crime do Padre Amaro’, quando, em 1873, por escolha e influência, abandonou o cargo de Administrador de Leiria, impingido pelo pai, e assume a posição de Cônsul de Portugal, viajando pelo Canadá, Estados Unidos e América Central. É lá que, com vinte e oito anos, ao lidar com a realidade social que o cargo exigia e afastado dos meios burgueses e boémios da cidade de Lisboa, que Eça ganha a capacidade de debruçar sobre os valores tradicionais da vida portuguesa, com uma visão humanizadora e pungente da sociedade em geral, povoada por personagens diárias, com comportamentos reais, tocando no pessimismo, ironia e no humor.

Entre 1874 e 1878, é transferido para o consulado de Newcastle-upon-Tyne e é lá que escreve ‘A Capital’, plena de realismo. E é no final desse ano que publica ‘O Primo Basílio’, carregado de ironia, numa análise da família burguesa urbana. Mesmo em Inglaterra, Eça publicava esporadicamente no Diário de Notícias, em Lisboa, a rubrica «Cartas de Inglaterra».

Eça continuou a redigir as suas obras e as suas crónicas para o jornal ‘Diário de Notícias’, viajando e vivendo fora do país.

Nos finais de 1885, Eça de Queirós adoece gravemente e entra em recuperação profunda. Regressa a Portugal e é nesse período que cria uma relação amorosa com D. Maria Emília de Castro, uma senhora fidalga, irmã do Conde de Resende, seu amigo. Ambos acabam por se casar, Eça com quarenta anos e ela com vinte e nove anos e da relação nascem quatro filhos.os_maias_book_cover

Em 1888, Eça pede para que seja escolhido para ocupar o lugar do Cônsul de Paris que vaga e muda-se para França, com a mulher. Aqui Eça toma uma atitude irreverente, transparecendo a descrença no progresso. Seria ali que Eça escreveria ‘Os Maias’.

Eça de Queirós ingressou no grupo ‘Os Vencidos da Vida’, com fortes ligações à ‘Geração de 70’, onde é declarada a renúncia dos seus membros às aspirações da juventude, substituindo o desânimo por uma leveza elegante e irónica. Aliás, Eça definiu o grupo como ‘grupo jantante’, já que se reuniam apenas para jantares e convívios semanais no Café Tavares, no Hotel Bragança ou em casa dos seus membros.

Após doença prolongada, a dezasseis de agosto de 1900, Eça de Queirós morre, em Neully com cinquenta e cinco anos. O corpo seria transladado para Portugal,  realizando-se os funerais para o cemitério do Alto de S. João em Lisboa.

Eça lavou o rosto da sociedade e expôs os seus defeitos tal como nenhum tinha feito até então. Chocou a sociedade da época ao criticar violentamente a hipocrisia existente no seio social, político e religioso. Sendo um dos pioneiros da literatura realista em Portugal e através da sua originalidade, humor caricatural e riqueza vocabular, diferente do romantismo que o precedeu, de frases mais curtas, impactantes em linhas simples, Eça viveu mais da metade da vida fora do país natal, sem nunca deixar de refletir sobre ele.  E acabou por reconhecer os mesmos defeitos no estrangeiro, dando por si a apelar a sentimentos nacionais no fim da sua vida.

 

“O espírito revolucionário tem tendência a invadir todas as sociedades modernas, afirmando-se nas áreas científica, política e social. A revolução constitui uma forma, um mecanismo, um sistema, que também se preocupa com o princípio estético. O espírito da revolução procura o verdadeiro na ciência, o justo na consciência e o belo na arte.” | Eça de Queirós