Eleições Europeias 2014 – A abstenção galopante e as razões para 14 mil presos não terem votado

Os leitores regulares deste meu espaço sabem que muito raramente falo de política no “Desnecessariamente Complicado”, contudo esta semana foi esse o tema escolhido. E porque abordo eu tão poucas vezes algo de tão essencial para as nossas vidas? Porque apesar de ser um tema que me interessa (não fosse eu licenciado em Ciência Política) e que é, sem sombra de dúvida, importante para a nossa vida (presente e futura) é algo que não me motiva muito no que à escrita diz respeito. E porque no Mais Opinião temos excelentes cronistas que se dedicam quase exclusivamente a esse tema. Mas esta semana tinha de ser, tamanha foi a minha indignação para com o tema que vos trago: as eleições europeias de 2014.

Caso não tenham reparado decorreram no passado dia 25 de Maio as eleições para o Parlamento Europeu. E se se deu ao trabalho de se deslocar às mesas de votos percebeu que muitos outros escolheram fazer exactamente o oposto: ficar sossegados em casa não indo assim exercer um direito seu, uma conquista de Abril. E começo precisamente por aqui. É que os vinte e um eurodeputados portugueses foram eleitos por apenas 26,44% dos eleitores. Ou seja, tivemos 66,09% de abstenção (aos quais devemos juntar os 4,41% de votos em branco e os 3,06% de votos nulos).

E muito sinceramente não aceito, nem apoio, o “não-voto” como um acto de protesto e revolta. Se realmente querem que algo mude então devem exercer o direito de voto! E se não souberem em que partido votar optem por votar em branco. O voto em branco é, em si mesmo, um acto de protesto e uma “chapada de luva branca” aos partidos políticos (todos eles, da direita à esquerda).

Mas mais do que analisar as percentagens de cada partido e discutir as subidas e descidas de votação em relação a 2009 o que realmente me interessa é algo muito mais específico: os votos dos reclusos e dos portugueses inscritos no estrangeiro.

Sim, porque caso não saibam a legislação permite que os cidadãos que estão presos votem. Quer dizer, na teoria permite. Na prática não. Duvidam? Então leiam este documento da autoria da Comissão Nacional de Eleições (CNE): http://www.cne.pt/sites/default/files/dl/pe_2014_apoio_voto_antecipado_presos.pdf

Este documento foi redigido propositadamente para estas eleições e todo ele é delicioso. Diz então o documento que “até 5 de Maio deve pedir ao presidente da câmara do município onde está recenseado, por meios electrónicos ou por via postal, a documentação para votar, enviando cópias do bilhete de identidade/cartão de cidadão e do cartão de eleitor/certidão de eleitor e ainda documento comprovativo do impedimento emitido pelo director do estabelecimento prisional”. Este primeiro ponto tem muito que se lhe diga começando logo pelo facto de os presos terem de enviar um email ou uma carta para o Presidente da Câmara local. Porque como é óbvio todas as celas possuem um computador com acesso à internet, certo? Porque como é óbvio todos os presos vão enviar uma carta ao Presidente da Câmara local, certo?

Bem, adiante. O final da frase acima citada tem outra afirmação que tem de ser analisada: “(…) e ainda um documento comprovativo do impedimento emitido pelo director do estabelecimento prisional”. Ou seja, os presos têm de provar…que estão presos e o director do estabelecimento prisional teria de emitir um documento por cada preso. Claro que todos nós acreditamos que os directores se iam dar a esse trabalho de dimensões bíblicas, certo? Claro que sim. Só duraria um ano, mas tirando isso nada a apontar a essa exigência.

Mas esperem, isto ainda não acabou, porque diz o ponto seguinte: “Até 8 de Maio, o Presidente da Câmara Municipal envia-lhe, por correio registado com aviso de recepção, a documentação para votar e devolve-lhe os documentos que acompanharam o pedido”. Portanto é suposto nós acreditarmos que todas as Câmaras Municipais vão, num espaço de três dias, receber os referidos documentos, tratá-los e reenviar a documentação obrigatória? Ah, e todos com aviso de recepção? Claro que sim, mais uma vez parece tudo perfeitamente plausível!

Continuemos na análise que a procissão ainda nem saiu do adro! O terceiro ponto do documento da Comissão Nacional de Eleições diz que “entre 12 e 15 de Maio, o Presidente da Câmara Municipal da área do estabelecimento prisional ou vereador credenciado desloca-se ao estabelecimento em que se encontre para recolher o seu voto”. Portanto se até agora tudo parecia plausível este ponto então nem se discute. Vocês estão mesmo a imaginar o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa (ou do Porto, ou de Sintra, ou de qualquer outra Câmara Municipal do país) a ir às prisões recolher pessoalmente os votos não estão? Se tudo o resto era de loucos, este ponto então nem se discute.

Mas o CNE guardou o melhor para o fim. Senão vejamos: “Saiba o seu número de eleitor: Na Junta de Freguesia do seu local de residência; através de SMS (gratuito) para 3838 (…); na Internet: www.recenseamento.mai.gov.pt”. Estes senhores são comediantes nos tempos livres não são? É que só isso explica que digam aos reclusos para se deslocarem à “sua” Junta de Freguesia, que enviem uma SMS ou que vão à internet para saberem o seu número de eleitor! Como se pudessem abrir a cela e ir à Junta de Freguesia a qualquer hora. Como se as regras não proibissem expressamente os telemóveis e os computadores (e consequentemente a internet) nas celas.

Mas em que mundo vive esta gente? Porque não afirmam logo que os reclusos não podem exercer o seu direito de voto? Era muito mais simples e directo do que criarem um regulamento patético e que apenas ridiculariza o país, e o CNE em particular. Tudo isto, do início ao fim, é ridículo, mas a minha parte preferida foi o facto de este documento apenas ter chegado às prisões nacionais (e pelo que consegui apurar nem sequer chegou a todas…) no dia 30 de Abril, sendo que os reclusos tinham de votar até ao dia…5 de Maio. Mais uma vez faz todo o sentido.

Ah, e antes de terminar deixo-vos com a seguinte reflexão: dos 221.753 portugueses que vivem no estrangeiro e que podiam (e deviam, acrescento eu) ter exercido o seu direito de voto no passado dia 25 de Maio apenas 3883 o fizeram. Ou seja, tivemos uma taxa de participação de 1,75% e uma abstenção de 98.25%. Sim, leram bem, 98.25% dos emigrantes portugueses não votaram! Ah, mas querem a cereja no topo do bolo? Então cá vai: 47.82% votou na Aliança Portugal (PSD/CDS-PP) enquanto que apenas 23.05% votou no Partido Socialista.

Portanto os pouquíssimos portugueses que se deram ao trabalho de ir votar fizeram-no na coligação de direita responsável pela sua saída do país, pela sua emigração, pela distância que os separa do seu país, da sua família, dos seus amigos. Realmente, que cabeça a minha, faz todo o sentido. Atenção apenas para o facto de os resultados acima apresentados relativos aos emigrantes não serem os finais mas sim os parciais, quando ainda faltavam apurar 17 dos 71 consulados.

Serei o único a achar tudo isto tão incrível quanto triste, e tão surpreendente quanto expectável? Às tantas sou mesmo o único. Espero apenas que não se arrependam da vossa decisão, seja ela qual for.

Boa semana.
Boas leituras.

Crónica de Bruno Neves
Desnecessariamente Complicado
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