Em Estremoz teve lugar o reinado mais curto da história da monarquia em Portugal

Numa recente incursão que fiz a território espanhol, passei de carro, a caminho da fronteira do Caia, por uma cidadezinha alentejana, na raia de Vila Viçosa, que é também ela de visita obrigatória para quem gosta de revisitar a história e ainda mais aprecia boa gastronomia.

Seguindo a sinalética que apontava na direção do centro, entrei por ali adentro e, naquele emaranhado de ruas dispersas que tinham um só sentido, terminei num largo com uma praça de táxis de um lado, uma majestosa Igreja e as sucursais dos principais Bancos do outro, do qual saí tomando o caminho íngreme que apontava para o castelo, que só vi quando quase esbarrei nas suas muralhas. Adiante do miradouro, havia uns degraus de pedra, milenares como a paisagem que do alto daqueles quatrocentos e quarenta e seis metros de altitude se avistava, e num deles, praticamente rente ao chão, sentei-me de pernas esticadas e de frente para o sol. Observara primeiro a planície e agora a arquitetura daquele lugar pleno de inspiração. Fiz com mão esticada uma espécie de pala e, de frente para o castelo, detive-me a observá-lo e às pessoas que paravam a tirar fotografias, enquadradas pela entrada da Pousada da Rainha Santa Isabel, ainda à sombra da imponente torre de menagem de vinte e sete metros de altura. Não me arrependia de ter parado ali e enquanto esperava para recuperar de ter percorrido, em pouco mais de hora e meia, uma distância sensivelmente igual a três quartos da que liga Lisboa a Elvas, onde pretendia pernoitar dali a umas horas, resolvi entrar e tomar um café. Talvez viesse a ser bafejado pela sorte e alguém me contasse alguma história curiosa daquele lugar.

Sabia que, em tempos, Elvas fora uma cidade fortificada e tivera um grande peso na defesa do território, mas hoje em dia a partir do que resta da cerca original, ficamos com a impressão de que, olhando em direção a Espanha, nunca daquele lado da fronteira veio a menor ameaça, nem na época medieval em que Badajoz era um povoado só em tamanho diferente daquilo que é hoje: uma linha próxima da do horizonte unindo os pontinhos luminosos à noite que formam o seu perímetro urbano e se estende quase até à foz do Guadiana.

Contudo, a cidade de que vos venho falar hoje, ainda distante do posto fronteiriço onde havia o Posto da Guarda que foi substituído mas não o restaurantezinho à ilharga onde continuam a servir-se excelentes almoços, chama-se Estremoz, cujo ex-libris é uma cerca medieval mandada construir no século XIII pelo Rei D. Afonso III, com o objetivo de proteger um castelo de planta quadrangular no centro de uma povoação de quase tão poucas almas que aí viviam como as que ele podia albergar confortavelmente no seu interior.

Do que resta desta muralha, as principais atrações continuam a ser as portas que serviam de entrada para a vila medieval, sendo que a maior delas era a que funcionava a partir do espaço deixado em aberto pela conclusão do muro onde foi colocada a última pedra, recolhida das pedreiras da região pelo seu povo que, à dureza dos materiais usados deve ter ido buscar o exemplo para conseguir resistir a tantas adversidades que sofreu ao longo da história.

Numa dessas ocasiões, perdeu-se um considerável número de vidas e campos de cultivo foram incendiados, para que fosse mantida a independência de Portugal. A batalha do Ameixial, que ocorreu em 1633, foi justamente considerada uma das mais importantes do período pós-restauração da independência e por ela, muito mais do que a coragem dos nossos soldados, podemos aferir a ânsia dos portugueses pela liberdade. Para simboliza-la, um padrão de mármore branco comemorativo da batalha ganha pelos independentistas, decorado no capitel com uma coroa que sendo o símbolo da monarquia representava a existência naquelas paragens de seguidores do Duque de Bragança, foi colocado à margem do tecido urbano, perto de uma área de cultivo onde predomina a vinha, que pode ser desconhecida para a maioria das pessoas que está de passagem, mas não o é para aquelas que, a pretexto de conhecerem os locais históricos e a sua fabulosa gastronomia, seguem a famosa rota dos vinhos alentejanos como se de um trilho secreto se tratasse que os levasse à descoberta de um imenso tesouro.

De passagem pelo património não classificado da região, damos um passeio ao ar livre e entre os penedos da serra d’Ossa, à vista mesmo do observador mais distraído, ganham forma as das típicas Antas do período Neolítico Final, que consistem em monumentos funerários que talvez não pudessem concorrer em altura com a torre de menagem de um castelo, mas que haviam já dado provas de levar-lhes a melhor em matéria de longevidade. Trata-se de construções a partir da sobreposição de pedras pesadíssimas, que mais tarde passaram a ser usadas nos trabalhos de cantaria, tão famosos pela sua beleza como as peças de tapeçaria e os linhos bordados à mão ou as peças forjadas no ferro ou esculpidas na madeira ou na cortiça. Aqui, para onde quer que se olhe, veem-se mais vestígios de um passado longínquo do que apenas os encontrados pelos historiadores nas escavações levadas a cabo na villa romana de Santa Vitória do Ameixial, construída pelos colonizadores no contexto da romanização da Península Ibérica.

Deste modo, apresentam-se-nos, dos primeiros ocupantes do século I, os artefactos e os painéis de azulejos, bem como, pela descoberta de mais moedas numas casas do que noutras, a certeza de que já nessa altura viviam separados os ricos dos pobres. De como era vivida a Fé cristã no século XIII, temos o conjunto monumental da alcáçova de Estremoz com a muralha medieval e o castelo em grande plano, a par da Igreja de S. Francisco no interior do convento de inspiração gótica com o mesmo nome. De um período mais tardio, a rondar os finais do século XV, temos a Capela manuelina de D.Fradique de Portugal, vice-rei da Catalunha e Arcebispo de Saragoça, assim como o convento das Maltesas que, a partir do século XVI, foi sede de clausura das freiras da Ordem de Malta. Por fim, da arquitetura militar do século XVII, realçado o exemplo das portas e baluartes da segunda linha de fortificações, que visavam defender o Reino da ofensiva espanhola no período das Guerras da Restauração, e da civil, o bairro de Santiago ou a Casa Simões de Sousa, esta mandada construir por um conhecido empresário do mundo teatral na primeira metade do século XX.

Nas vertentes viradas a nascente das Serras da Lage e S. Bartolomeu, nas proximidades do concelho de Sousel, o sol projetava nas encostas o recorte das nuvens no céu e era hora de apascentar as cabras e as ovelhas. Numa zona de pastoreio, talvez intimidadas pela luz solar frontal que feria o olhar, um rebanho disputava um lugar à sombra de uns chaparros, preferindo os animais a companhia uns dos outros à do pastor que protegia o corpo da inclemência dos raios ultravioleta da tarde com um chapéu de aba larga e um capote de lã que devia fazer subir a temperatura do corpo à de quando era à chuva que tinha andado e se via obrigado a ficar doente em casa com febre alta.

No céu, a ausência de indícios que anunciassem a diminuição do calor, fazia supor que a temperatura do ar atingisse o valor máximo à medida que me aproximasse de Elvas, onde deveria chegar em pouco mais de trinta minutos se me pusesse o quanto antes a caminho.

Paguei o café e despedi-me da esplanada panorâmica e da cidade, com um derradeiro olhar para nascente, onde predominam na paisagem as explorações de mármore, os campos cerealíferos, os montados de olival, de azinheiras e os sobreiros que são a grande imagem rural de marca da região, sentindo-me momentaneamente Rei de Portugal por um dia. Senti-me na pele do monarca, dono do território que abarcava até onde a vista alcançava e das planícies que se estendiam para lá da serra d’Ossa em direção a Portalegre, da qual em diante eu continuava a mandar até chegar à próxima capital de distrito e assim por diante, dentro do território nacional.

Foi curto o meu reinado e acabou sem sobressaltos. Enfiei-me no carro e virei costas ao castelo, que tantas vezes foi tomado de assalto por cristãos e muçulmanos, que de uma forma violenta tomavam ao inimigo o que a si diziam pertencer.

Passei de monarca a plebeu, tão depressa como demoraria a perceber que não tenho sangue azul quem me visse entusiasmado por saber que recentemente haviam transformado o antigo Paço Real medieval, na Pousada da Rainha Santa Isabel, onde gostaria de dormir e sonhar com outros lugares, antigos Paços Reais onde tanto como àquele gostaria de regressar um dia.