Em Memória da Tusca – Carla Vieira

Ontem senti a morte de perto. Ontem foi o dia em que cheguei a casa mal preparada para ver o que vi, e o mundo tremeu. Perdi o equilíbrio, caí ao chão o solucei como se a morte já tivesse chegado. Na verdade foi hoje que chegou e levou um pedaço de mim. Levou-me a minha melhor amiga peludinha, a minha Tusca, que durante quinze anos me viu crescer e cresceu comigo.

Ontem vi sofrimento e experienciei-o também. Ontem tomei a decisão mais adulta da minha vida e escolhi entre a vida e a morte. Não pisquei os olhos e veio-me à boca o que sempre tive dúvidas de dizer. Ontem escolhi a morte de hoje. Ontem escolhi eutanásia.

Nunca pensei ser enfrentada com uma escolha desta maturidade. Sempre assumi (covardemente), que um dia iria acordar, ir-lhes dar de comer, chamar por ela e não obter resposta. Assumi que iria chorar mas assumi igualmente que seria uma partida pacífica, de quem adormeceu feliz e apenas dorme um longo sono. Não foi assim que o mundo quis. O mundo quis testar a resiliência dela e a minha força também. Digo com orgulho que ambas passamos esse teste. Ela à sua maneira, cheia de dores mas a manter-se acordada segundo a segundo, minuto a minuto, horas infindáveis de dor visível que me trazia lágrimas aos olhos, mas ainda assim acordada, linda, mais forte do que eu, viva. E eu também passei o teste, à minha maneira, escolhendo a morte dela em vez do egoísmo que seria esperar que a vida dela se esgotasse, em vez do egoísmo que seria dizer “prefiro que ela viva mais em sofrimento do que levá-la ao veterinário”.

A verdade é que ela estava a sofrer demasiado, e por muito terrível que foi ver a vida a esvair-se dos olhos ceguinhos dela, mais terrível seria deixar a natureza seguir o seu rumo. A natureza queria-a sofrida. A natureza fez a minha pequena sofrer, e eu disse-lhe que já chega. Ninguém faz sofrer o que é meu.

A minha noite existiu sem descanso. A dela também. Assumi – mais uma vez na minha covardia – que se calhar a noite a aliviasse do fardo da dor. Mais uma vez provou-se que a família (mas mais propriamente eu) tínhamos uma escolha a fazer. Orgulho-me, na minha dor, de ter feito a melhor escolha possível. Toda a gente tratou bem dela. Todos nós, a família, lhe demos um beijinho, um adeus final, festas pelo focinho, e finalmente o corpinho deixou de trabalhar, os pulmões pararam e ela partiu. Partiu connosco, partiu com a família ao lado, partiu como quem adormece depois de um longo dia. Partiu, espero eu, com um final respiro de alívio.

Restam-nos quinze anos de memórias. Quinze anos com ela a acompanhar-nos. A forte. A pequena. A morceguinho. A Tusca.

Veio ter connosco pequenina numa caixa e numa caixa nos foi entregue para enterro. Consolo-me em pensar que estará sempre cá em casa, connosco, onde pertence.

Estou triste mas aprendi muito com ela. Por esse motivo agradeço-lhe. Agradeço a força dela e ter aguentado uma noite inteira comigo ao lado a falar com ela, a contar-lhe histórias, a rir-me dela e para ela. Agradeço-lhe a ligação que construímos juntas ao ponto de eu ser a única que a acalmou em toda a sua dor, a única que a fortaleceu, que a sentiu e a fez sentir acompanhada. Que ela teve uma vida feliz e teve sorte em vir morar connosco, teve. Mas nós, os humanos dela, nós é que fomos os sortudos. Nós é que não a merecemos.

Para ti Tusquinha, que me viste crescer e tornar mulher, um grande obrigada. Espero ter-te feito feliz. E como sempre, minha pequenina: linda menina.

***

Este texto foi escrito no Sábado passado, dia 28. No dia 27 vi, pela última vez, a minha companheira de brincadeiras que conheço desde criança. Uma das minhas tradições pessoais de passagem de ano era brindar com os copos e logo a seguir ir fazer festas à minha pequena e dar-lhe os parabéns por passar de mais um ano para outro. Hoje não vou poder fazer isso. 2014 vai ser um ano sem Tusca, e o meu mundo está mais pobre. Vou dar tudo de mim por ela, e espero fazê-la orgulhosa de mim. Ela ensinou-me a ter respeito pelos animais, ensinou-me mimo, companheirismo, e ensinou-me a morte e o luto. Ensinou-me desde que nasceu até morrer, e continua a ensinar-me. Não poderia ter conhecido melhor professora.

21-11-1998
27-12-2013
Por tudo, obrigada.

Crónica de Carla Vieira
Foco de Lente