Em Negaciolãndia, sê negacionista…

Jeremias acordou de um sonho maravilhoso. Não o quis perder logo, por isso optou por ficar acordado, mas sem abrir os olhos. Preferiu preservar um pouco mais tudo aquilo que tinha vivido a dormir. Sabia que não passava de um sonho, mas, mesmo assim, optou por ludibriar-se a si mesmo, só um pouco mais. Mas como tudo o que é bom termina rápido, as palavras de Sabrina interromperam-lhe a viagem alucinante que estava a viver.

“Amor, estás aí?…”, disse Sabrina.

Jeremias parou de lutar contra o árduo desejo de continuar a sonhar e abriu os olhos.

“Sim, estou aqui…”, disse.

Estava escuro no quarto. Sabrina encontrava-se deitada ao seu lado, na cama, e fazia-lhe festinhas na cabeça, ostentando um ar preocupado.

“Que barulho é este, Sabrina?”, perguntou Jeremias. “Alguém deixou um alarme ligado ou algo do género?”

“Não ligues a isso, amor. Como te sentes?”, respondeu Sabrina.

Jeremias achou estranha aquela pergunta, mas aprendera a não se surpreender com as perguntas estranhas de Sabrina, porque isso fazia parte da sua maneira de ser. E, muito provavelmente, seria uma das coisas que o mais fazia gostar dela.

“Sinto-me bem, mas um pouco estranho.”, acabou por responder.

“Ainda bem, meu amor. Os teus pais passaram por aqui. Não te quiseram acordar, e pediram-me para dizer que gostam muito de ti e que estão cheios de saudades tuas…”, disse Sabrina.

Jeremias torceu o nariz, e disse:

“Pais? Isso é mentira. Eu não tenho pais. Isso não existe sequer. Isso é um absurdo! O que se passa contigo, Sabrina? Tens tomado os teus comprimidos para as alergias? Acho que isso te anda a afectar as ideias. Devem ser os efeitos secundários. Deverias ir ao médico rever essa medicação! Pais… Pfff. Que absurdo! Sabes bem que somos todos seres criados em cativeiro! Não nascemos! Somos criados geneticamente!”

Sabrina respirou fundo. Optou por não contrariar Jeremias, para não o enervar. Tentou alinhar na história e preferiu adoptar uma nova forma de comunicação, tentando avivar a memória de Jeremias, ao invés de o inquietar ainda mais.

“Tens razão, meu amor. Devem ser os comprimidos que me estão a atazanar as ideias. Ou, então, é o facto da porcaria deste mundo estar virado do avesso! Como, por exemplo, o vulcão de Las Palmas que não pára de jorrar lava! É que já enerva. Tantos dias sempre em erupção e não pára!”, disse Sabrina.

Jeremias ficou novamente atordoado com as palavras de Sabrina. O que raio se estaria a passar com ela, que não parava de balbuciar palavras tão absurdas e sem sentido nenhum. Primeiro, a ideia parva de ele ter pais. E, agora, a história de um vulcão estar a jorrar lava…

“Sabrina, estou a ficar preocupado contigo. Tu não estás bem, pois não? Um vulcão a jorrar lava há vários dias? Estás a brincar, não estás? Isso não existe sequer! Isso é coisa de filmes. Só acontecem em filmes!”

“Mas, Jeremias, as imagens que passam na televisão não mentem. Tem sido um horror…”, insistiu Sabrina.

“Ah, ah, ah! Tu estás louca! Estás a confiar naquilo que a televisão te mostra?! Isso é tudo manipulado! Até te digo mais; não só o vulcão não pára de jorrar lava, como também nunca esteve em erupção!”

Sabrina sabia que aquilo era reacção da doença. Ele não era assim. O cérebro dele só podia estar afectado pela doença. Mesmo assim, talvez por estar a sentir-se um pouco revoltada, optou por atiçar um pouco mais Jeremias, talvez, até algo esperançosa de que isso conseguisse despertar o cérebro dele para a realidade.

“Amor… então, se o raio do vulcão não está, nem nunca esteve em erupção, vais agora também afirmar que o planeta Terra não é redondo e que é plano, é isso?!”

Jeremias sentou-se na cama. O quarto continuava escuro e aquele barulho parecido com um alarme já o estava a incomodar. Olhou para Sabrina, vislumbrando apenas os olhos dela no meio do escuro, segurou-lhe a cara nas suas mão, sentindo algo estranho que lhe pareceu uma espécie de máscara estranha, e disse:

“Amor… vamos para o hospital. Tu não estás nada bem. Temos de ir para o hospital. Vamos, por favor? Tu não dizes nada com nada. Mas é claro que a Terra é plana… Mas é claro que o vulcão não está e nunca esteve em erupção. E é obvio que nenhum de nós tem pais. Somos criados em cativeiro. Vamos, por favor. E desliga-me a porcaria deste barulho que já não posso mais com ele! Temos de ir para o hospital imediatamente, antes que, a seguir, digas que estamos a sofrer com uma pandemia, e que estão a morrer milhões de pessoas!”

Sabrina desata a chorar compulsivamente, insultando a soluçar, para sim mesma, a maldita Covid…

Jeremias sente uma enorme vontade em voltar a deitar-se e fechar os olhos. E, de repente, tudo ficou mais escuro ainda. E o barulho. O tal barulho horrivelmente irritante alterou-se de um “Pi, pi, pi, pi” para um…

“PIIIIIIIIIIIIIIIII”