Em nome de uma velha e histórica amizade

Não nos víamos há tempo suficiente para supor que estariam mais carecas do que eu e teriam hoje muito menos tempo para sair à noite do que no tempo em que jogávamos à bola juntos e não tínhamos filhos para cuidar nem mulher a quem tivéssemos que dar contas se chegássemos tarde a casa.

Não importa o meu nome, nem o que o faço, e a minha idade só interessa saber a quem possa, julgando-me pelo aspeto, pensar que sou mais velho do que eles e achar que estou a mentir quando digo que brincámos na mesma rua e andámos todos na mesma escola, no mesmo ano.

Combinámos encontrar-nos para jantar ao fim de durante muitos anos apenas ter sabido deles por interpostas pessoas que os viam ou ouviam falar a respeito e lá me iam dando breves notícias.

Chegaram cedo, todos ao mesmo tempo, no carro do único deles que tinha vidros fumados atrás e onde cabiam quatro pessoas apertadas que ninguém conseguia ver da rua.

Cumprimentaram-me efusivamente, afastada a surpresa de verem as transformações operadas em mim: quase vinte quilos a mais, uma mão-cheia de sinais que evidenciavam a passagem dos anos, olheiras que denotavam cansaço e um polo de marca que devem ter estranhado porque se não fosse contrafeito estaria acima das minhas reais possibilidades de compra.

A minha descrição física era a de um homem aparentemente saudável, mas por causa de uma depressão crónica que me afetava os neurónios vinha perdendo forças e sinto que se nada tivesse feito para reencontrá-los não seria ao passado que iria reaver a energia de que necessitava para enfrentar os problemas do presente. Vi no modo como um dos meus amigos reagira às consequências de um divórcio litigioso o exemplo a seguir de como devia reagir à minha recentíssima perda de emprego. Afinal de contas, estava na situação de desempregado, semelhante à que afetava milhares de pessoas, mas era preciso olhar em frente. Perdera o emprego mas nenhum amigo ficara pelo caminho.

À vista dos problemas que tanto a mim como a ele afligiam, poderia parecer de mais fácil resolução o de escolhermos em conjunto um restaurante onde pudéssemos jantar e conversar pausadamente, mas optar pela casa de pasto que mais nos conviesse acabou por revelar-se difícil na medida em que a preferência de cada um recaía num lugar diferente e ninguém dava mostras de ceder nem com o avançar das horas.

Desde logo, formaram-se dois grupos com pretensões bem distintas. Do lado dos que preferiam comer carne, eram mais numerosos os que de bom grado iriam mais longe para degustar um bom bife nem que fosse a pé, mas entre estes menos de metade se dispunha a pagar um preço elevado por um naco que fosse tão grande que justificasse irmos tão longe.

Resolvemos por isso permanecer perto do local onde marcámos encontro e, o quanto antes, concordámos em pôr em prática um audacioso plano que visava no futuro vermo-nos mais vezes do que até ali e, de cada vez que o fizéssemos, levar algum dos amigos que morasse mais longe e não tivesse tido ainda oportunidade de estar presente.

Pelas minhas contas e à média de três jantares por ano, só dali a uma década esgotaríamos o tema e falaríamos menos das desculpas esfarrapadas que alguns deles apresentavam para não ir do que das razões que nos impediam a nós de faltar. É que havia as futeboladas, as discussões à volta de quem era o melhor piloto de Fórmula 1, as jogatanas de cartas, tipo lerpa e sueca, os disputadíssimos campeonatos de carica, as tardes infindas na praia, as primeiras idas à discoteca e as miúdas.

As miúdas. Nunca as havia em número em número suficiente, na nossa rua, que satisfizesse a imensa curiosidade que nos suscitava o universo feminino do qual queríamos fazer parte.

Naquela noite ao jantar, gostava que se tivessem sentado connosco à mesa todas as amigas que tivemos e ainda as que nunca o quiserem ser por timidez ou porque na forma como as assediávamos na rua só viam um pretexto para nos quererem manter à distância e não se importarem de correr o risco de por o pé fora da passadeira para não terem que atravessar a rua mesmo à nossa frente.

Falámos das nossas vidas como se fôramos, ao longo dos anos, parceiros num jogo de cartas durante o qual não houvéssemos trocado uma única palavra. À distância de mais de vinte anos dos principais acontecimentos, recordámos, com igual interesse ao que teria para qualquer cidadão americano a notícia do regresso do homem à Lua, a nossa infância, a adolescência e a passagem à idade adulta.

Pondo fim aos entraves que durante tantos anos nos mantiveram ausentes, encurtámos distâncias e de repente morávamos outra vez todos na mesma rua. Éramos, aos olhos uns dos outros, os vizinhos a nosso ver ideais mas que mais ninguém desejava ter por causa do barulho que fazíamos quando nos juntávamos.

No final, antecipando a resolução de um conflito que não quisemos deixar para mais tarde, escolhemos a morada do próximo restaurante para quando fossemos jantar fora. Optámos por um que fica mais perto de minha casa do que desse imenso mar de conchas de onde vem o peixinho fresco que lá servem, mas não tão perto que não tenhamos que ir novamente de carro. Porém, estou certo de que usá-lo-íamos mesmo que o restaurante fosse ao virar da esquina.

Não nos devemos esquecer de que há quem não vá a lado nenhum a pé para comer peixe nem em nome de uma velha e histórica amizade como a nossa.