Entrevista a Alberto Caeiro

Esta tarde, recebemos, neste, nosso, espaço, um convidado muito especial, o poeta das sensações, assim amplamente conhecido por vós, público. De seu nome Alberto Caeiro, loiro, sem cor, de olhos, azuis, claros, de cara rapada, e de estatura média, nasce, na capital, em 1889, apesar de ter vivido, sempre, no campo. Cedo fica órfão, deixando-se ficar em casa, na companhia de uma tia, velha, tia-avó, de parcos rendimentos, o que, talvez, explique a sua pouca instrução, quase nenhuma, apenas a primária, e a inexistência de qualquer profissão. Todavia, é considerado o mestre, ingénuo, entre os heterónimos pessoanos, inclusive pelo próprio ortónimo, por ser enigmático e complexo, intrínseco à Natureza, por desprezar, e repreender, qualquer tipo de pensamento filosófico, afirmando que o pensar nos retira a visão, por ofuscar, encobrir, o mundo, tal como é, simples e belo. Conheça-o, melhor.

1. Boa tarde, mestre Alberto Caeiro, o que pensa sobre o mundo que o rodeia?

Alberto Caeiro (futuramente, designado por A. C.): O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso eu do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso, porque pensar é estar doente dos olhos. Que ideia tenho eu das coisas? Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos? Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma e sobre a criação do mundo? Não sei. Para mim, pensar nisso é fechar os olhos, e não pensar. É correr as cortinas da minha janela, mas ela não tem cortinas.

2. E sobre o mistério das coisas?

A. C.: O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério! O único mistério é haver quem pense no mistério. Quem está ao sol e fecha os olhos, começa a não saber o que é o sol e a pensar muitas coisas cheias de calor, mas abre os olhos e vê o sol, e já não pode pensar em nada, porque a luz do sol vale mais que os pensamentos de todos os filósofos e de todos os poetas. A luz do sol não sabe o que faz, e, por isso, não erra e é comum e boa. Há metafísica bastante em não pensar em nada. Apenas creio no mundo como um malmequer, porque o vejo, mas não penso nele, porque pensar é não compreender. O mundo não se fez para pensarmos nele, mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

3. Estar de acordo com ele é? Pode especificar, concretizar?

A. C.: Estar de acordo com ele é ter como casa artística a Terra toda, é pensar numa flor, é vê-la, é cheirá-la, é… Se falo na Natureza, não é porque saiba o que ela é, mas porque a amo, e amo-a por isso, porque quem ama nunca sabe o que ama, nem sabe por que ama, nem o que é amar, amar é a eterna inocência, e a única inocência não pensar.

4. Então, nessa linha, os seus sentidos, sentimentos, são os seus pensamentos?
A. C.: Sem dúvida. Não se pode esquecer que eu sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos e os meus pensamentos são todas as sensações, por isso, é que penso com os olhos, e com os ouvidos, e com as mãos, e com os pés, e com o nariz, e com a boca e comer um fruto é saber-lhe o sentido, porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura, o que nós vemos das coisas são as coisas, porque veríamos nós uma coisa, se houvesse outra? Porque ver e ouvir seria iludirmo-nos, se ver e ouvir são ver e ouvir? O essencial é saber ver, saber ver sem estar a pensar, saber ver quando se vê, e nem pensar quando se vê, nem ver quando se pensa, mas isso, tristes de nós que trazemos a alma vestida!, exige um estudo profundo, uma aprendizagem de desaprender e uma sequestração na liberdade daquele convento de que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas e as flores as penitentes convictas de um só dia, mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas nem as flores senão flores, sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

5. Se as suas sensações são pensamentos, então, propõe uma não filosofia, resultante de uma poesia natural e espontânea, oriunda dessa identificação do sujeito poético com a Natureza, onde nada há para corrigir, nem para adicionar, nem para retirar, alterar, certo?

A. C.: Sim, eu não tenho filosofia. Tenho sentidos. Para além de que pensar incomoda como andar à chuva, quando o vento cresce e parece que chove ainda mais. Pensar no sentido íntimo das coisas é acrescentado, como pensar na saúde, ou levar um copo à água das fontes. O único sentido íntimo das coisas é elas não terem sentido íntimo nenhum.

6. Não crê em Deus, portanto.

A. C.: Não acredito em Deus, porque nunca o vi, se ele quisesse que eu acreditasse nele, sem dúvida, que viria falar comigo e entraria pela minha porta dentro, dizendo-me, Aqui estou!, isto é talvez ridículo aos ouvidos de quem, por não saber o que é olhar para as coisas, não compreende quem fala delas com o modo de falar que reparar para elas ensina, mas se Deus é as flores e as árvores, e os montes, e sol, e o luar, então acredito nele, então acredito nele a toda a hora, e a minha vida é toda uma oração e uma missa, e uma comunhão com os olhos, e pelos ouvidos, mas, se Deus é as árvores e as flores, e os montes, e o luar, e o sol, para que lhe chamo eu Deus? Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar, porque, se ele se fez, para eu o ver, sol e luar e flores e árvores e montes, se ele me aparece como sendo árvores e montes e luar e sol e flores, é ele que quer que eu o conheça como árvores e montes e flores e luar e sol e por isso eu obedeço-lhe, que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?, obedeço-lhe a viver, espontaneamente, como quem abre os olhos e vê, e chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes, e amo-o sem pensar nele, e penso-o, vendo e ouvindo, e ando com ele a toda a hora.

7. Ou seja, pensar em Deus é desobedecer –lhe.

A. C.: Porque Deus quis que o não conhecêssemos, por isso não se mostrou, sejamos simples e calmos, como os regatos e as árvores, e Deus amar-nos-á fazendo de nós belos  como as árvores e os regatos, e dar-nos-á verdor na sua primavera e um rio aonde ir ter quando acabemos! Para que é preciso ter um piano? O melhor é ter ouvidos e amar a Natureza.

8. Como gostava que fosse a sua vida?

A. C.: Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada, e que para de onde veio, volta depois, quase à noitinha. pela mesma estrada, eu não tinha que ter esperanças, tinha só que ter rodas, a minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco, quando eu já não servia, tiravam-me as rodas e eu ficava virado e partido no fundo de um barranco, quem me dera que eu fosse o pó da estrada e que os pés dos pobres me estivessem pisando, quem me dera que eu fosse os rios que correm e que as lavadeiras estivessem à minha beira, quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio e tivesse só o céu por cima e a água por baixo, quem me dera que eu fosse o burro do moleiro e que ele me batesse e me estimasse, antes isso que ser o que atravessa a vida.

9. Como se sente?

A. C.: Se eu pudesse trincar a terra toda, e sentir-lhe um paladar, seria mais feliz um momento, mas eu nem sempre quero ser feliz, é preciso ser de vez em quando infeliz para se poder ser natural, nem tudo é dias de sol, e a chuva, quando falta muito, pede-se, por isso tomo a infelicidade com a felicidade, naturalmente, como quem não estranha que haja montanhas, e planícies, e que haja rochedos e erva, o que é preciso é ser-se natural, e calmo, na felicidade, ou na infelicidade, sentir como quem olha, pensar como quem anda, e quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre, e que o poente é belo, e é bela a noite que fica, assim é, e assim seja, porque tudo é como é, e assim é que é, e eu aceito, e nem agradeço, para não parecer que penso nisso.

10. Essa é a concepção de poesia que defende. Que opinião tem acerca da que é feita pelos outros, pela leitura que tem feito?
A. C : Li hoje duas páginas de um poeta místico e ri como quem tem chorado muito, pois os poetas místicos são filósofos doentes e os filósofos são homens doentes, por dizerem que as flores sentem, que as pedras têm alma e os rios êxtases ao luar, os rios seriam homens doentes, é preciso não saber o que são flores e pedras, e pedras, e rios, para falar dos sentimentos deles, falar da alma das pedras, das flores, dos rios é falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos, graças a Deus, que as pedras são só pedras e que os rios são rios e que as flores são apenas flores.

11. Como fica ao redigir a prosa dos seus versos?
A. C.: Fico contente, porque sei que compreendo a Natureza por fora, e não a compreendo por dentro, porque a Natureza não tem dentro, senão, não era a Natureza. O mesmo acontece às flores, às pedras e aos rios, pois nenhum deles sente, pois nenhum deles tem alma ou êxtases ao luar, porque, se os tivessem, eram gente, ou melhor, seriam homens doentes. Por mim, escrevo a prosa dos meus versos. Nem sempre sou igual no que digo, e escrevo, mudo, mas não mudo muito, por isso. quando pareço não concordar comigo, reparem bem para mim, se estava virado para a direita, voltei-me agora para a esquerda, mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés, o mesmo sempre, graças ao céu, e à terra, aos meus olhos, e ouvidos atentos, e à minha clara simplicidade de alma. Deste modo, ou daquele modo, conforme calha, ou não calha, podendo às vezes dizer o que penso, e outras vezes dizendo-o mal, e com misturas, vou escrevendo os meus versos sem querer, como se escrever não fosse uma coisa feita de gestos, como se escrever fosse uma coisa que me acontecesse, como dar-me o sol de fora, procuro dizer o que sinto sem pensar em que o sinto, procuro encostar as palavras à ideia, e não precisar dum corredor do pensamento para as palavras, nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir, o meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado, porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar, procuro despir-me do que aprendi, procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, mas um animal humano que a Natureza produziu e assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem, mas como quem sente a Natureza, e mais nada, e assim escrevo, ora bem ora mal, ora acertando com o que quero dizer, ora errando, caindo aqui, levantando-me acolá, mas indo sempre no meu caminho, como um cego teimoso, ainda assim, sou alguém, sou o Descobridor da Natureza, sou o Argonauta das sensações verdadeiras, trago ao Universo um novo Universo, porque trago ao Universo ele-próprio, isto sinto, e isto escrevo, perfeitamente sabedor, do horizonte cheio de montes, baixos. Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o, sou místico, mas só com o corpo, a minha alma é simples, e não pensa, o meu misticismo é não querer saber, é viver e não pensar nisso, não sei o que é a Natureza: canto-a, vivo no cimo dum outeiro, numa casa caiada, e sozinha, e essa é a minha definição.

Assim, nos apareceu, Caeiro, de pura, e inesperada inspiração, para nos despertar a essência do interior no exterior.