Entrevista aos :Papercutz

Estimados leitores sejam muito bem-vindos a mais uma entrevista absolutamente exclusiva do Ideias e Opiniões. Depois de um interregno finalmente as grandes conversas estão de regresso! Desta vez tive o prazer de entrevistar Bruno Miguel, o líder dos :Papercutz. Sim, são portugueses e cantam em inglês. Sim o entrevistador e o entrevistado têm exatamente os mesmos nomes. E sim, é obrigatório seguirem, e ouvirem, os :Papercutz!

Antes da entrevista em si apenas um ponto prévio. É necessário um agradecimento muito especial à Raquel Laíns e à sua Let’s Start a Fire. Sem ela, sem a sua amizade e profissionalismo, esta entrevista seria completamente impossível. A ela, ao seu trabalho e ás bandas que acompanha e representa (em especial os :Papercutz claro, o nosso muito obrigado!

No single “Trust/Surrender” a letra diz-nos: “We fall, we rise/ Through lows and highs/We grow to understand/These are blessings in disguise”. Ser músico é caminhar frequentemente num limbo que separa a esperança de um amanhã melhor da descrença total?

A pergunta pode ser interpretada em dois sentidos: em termos de criação ou de vivência. No caso da primeira, se as letras ou canções que escreves passam por colocar em causa a tua realidade, é normal que tanto a noção de esperança ou descrença sejam abordados sobretudo ao longo de um crescimento pessoal. Acho que alguma da inocência que inicialmente tinha nos temas de :papercutz foi substituída por certezas e absolutismos, sendo que é possível ambos os extremos coexistirem num só trabalho, tanto que é essa a inspiração do mais recente álbum ‘King Ruiner’.

Pode até ser o caso em que a tua verdade pessoal se torne ainda mais universal. Quando escrevi ‘Trust/Surrender’ nunca imaginei que pudesse ver isso replicado a uma escala global. Vivemos um tempo de incerteza e certamente que podemos passar por ele sem mudarmos, ou aprender com que se passa à nossa volta.

Relativo à vida de um músico, essa questão é mais complicada, o sucesso ou insucesso que acompanha esses sentimentos, numa área tão estranha e em constante alteração, é algo pouco falado. Muitas vezes existem trabalhos em total independência com a vida do seu autor, mas no meu caso os dois têm sempre estado ligados. Sendo assim, e tal como no álbum, acho que os músicos passam pelos dois estados, muitas vezes num só dia.

Um grande exemplo disso e tendo em conta o seu desaparecimento recente, a Trilogia de Berlim de Bowie aborda precisamente essa questão, começando com o desalento pessoal e criativo de ‘Low’ e uma nota de esperança em ‘Lodger’.

O que esteve na base da inspiração para este novo single? E quanto tempo separou o início do final do trabalho neste disco dos :Papercutz?

Como mencionei, o tema aborda a necessidade de abraçarmos o desconhecido, porque nem tudo pode ser projetado e controlado. Não me refiro a um positivismo, longe disso, acho que esse pensamento não tem grande influência no resultado. Falo de um mecanismo de superação. O álbum foi escrito ao longo de dois anos.

Para quando está marcado o lançamento do novo álbum dos :Papercutz? E o que podemos esperar de “King Ruiner”?

Este ano, mas não me quero comprometer com datas. Tomei como decisão a liberdade de poder apresentar temas novos ao vivo com a Catarina Miranda, a vocalista do novo álbum, antes do seu lançamento e ao contrário do que sempre fiz.

Isso permite perceber quais as canções que acho que melhor representam a fase em que estamos e a mensagem estética e simbólica que o álbum se propõe a passar, e como tal, esses serão os que vão fazer parte do alinhamento final.

Bruno e Catarina, os :Papercutz, fotografados por Maria Louceiro

Voltemos agora um pouco atrás. O que aproxima, e o que separa, o Bruno Miguel de 2008, do Bruno Miguel de 2017?

O que aproxima é algo que tem sido uma constante, procuro sentir-me bem na minha própria pele, fazer dentro do possível o que gosto, e no caso em particular da música, ser honesto com o que escrevo e poder contribuir com uma voz própria.

O que separa, e tal como no tema, penso que deixei de acreditar que tudo depende da nossa vontade. Talvez aceitando esse facto me possa focar nas coisas que realmente dependem apenas de mim. Mesmo  reconhecendo-o, é um caminho que ainda estou a percorrer.

Continuemos a nossa viagem ao passado. Qual era a sua relação com a música durante a infância e a adolescência? Que referências musicais tinha nessa altura?

Bem, a minha infância foi sobretudo ligado à tecnologia, sempre gostei de computadores, fiz um curso de programação cedo, ainda antes de chegar ao secundário. E acabou por ser a área que inicialmente segui em termos formação profissional. É na adolescência que crio uma empatia com a música. Penso que na altura, e ainda é hoje em dia, foi uma forma de criar amizades, e esse acto mais social levou-me a um mais introspectivo que era descobrir o que realmente gostava de ouvir.

Eventualmente decidi também estudar música com aulas de piano e mais tarde  guitarra mas fora do circuito clássico. Na altura lembro-me da minha procura de sons entre o metal e a electrónica, como o industrial. O Porto tinha um underground muito ligado a este tipo sonoridades e era fácil ter acesso a alguns concertos e a pessoas conhecedores do assunto. Depois, como muitos, fiz parte de bandas de garagem, que me ajudaram a perceber uma parte do processo por detrás do tanto que a música me movia, e valorizar ainda mais o resultado final.

Recorda-se da primeira canção que o maravilhou verdadeiramente? Que canção foi essa e de que forma é que esse momento o influenciou?

Isso é uma forma romantizada de ver a relação de cada um com a música, a qual não me oponho mas no meu caso não existiu um momento assim. Existem várias canções e momentos influentes até aos dias de hoje. Relativo à primeira pergunta, uma das primeiras memórias musicais, mais atentas, de que me lembro, passa pela música que o meu pai ouvia, rock progressivo como Genesis.

Mas se a questão é simplesmente um momento influente para o meu próprio trabalho como músico, eu diria que descobrir artistas que dentro da pop criaram o seu espaço e mostraram que o formato canção pode ser algo muito mais vasto foi muito importante. Como forma cíclica, mais tarde acabei por reconhecer no trabalho do Peter Gabriel, essas mesmas qualidades.

A entrada no mundo da música foi o cumprir de um objetivo de vida ou obra do acaso?

Eu nunca pensei em ser músico de uma forma profissional mas também não foi uma total obra do acaso, é um resultado de uma série de eventos. Eu concluí a formação Universitária em Engenharia Informática e cheguei mesmo a exercer. A importância da música na minha vida já pesava alguns anos, já tinha inclusive escrito e editado música, e tentei encontrar uma actividade que juntasse as duas vertentes, talvez na concepção de software de suporte à produção mas na altura não encontrei nada semelhante em Portugal.

O único objectivo que tenho é sentir que faço o melhor que posso no meu trabalho e imaginei que me sentiria mais realizado em algo mais da música. Cheguei a fazer trabalhos de sound design e eventualmente consegui dar o salto à criação de música num projecto próprio.

Como, e quando, surgiram os :Papercutz? Quais foram as maiores dificuldades/obstáculos que encontrou na fase inicial do projeto?

Os :papercutz surgem verdadeiramente quando deixo de fazer parte de um grupo que na altura já tinha lançado um álbum de estreia. Talvez impulsionado novamente por uma vontade de controlo mas como tinha em paralelo alguns temas que chegaram a ser editados por uma netlabel test tube, da editora de Lisboa Mono Cromatica e que surgiram em algumas compilações. Sentia que era o projecto que fazia mais sentido dedicar-me a tempo inteiro. Inicialmente tinha apenas algumas noções de gravação e produção.

Tive que estudar e  aprofundar esses conhecimentos e o que conseguiria fazer com um computador e recursos limitados para tentar chegar a um álbum da forma que o imaginava. Isso também passou por trabalhar com outros músicos e tentar passar-lhes a mensagem e conceitos por detrás do projecto. Ainda hoje em dia aprendo coisas novas relativas a engenharia de som ou composição, por experiência ou formação, como em workshops.

De Bruno Miguel para Bruno Miguel: nunca pensou apresentar-se em nome próprio? De onde vem, e qual a explicação, para o nome “:Papercutz”?

Nunca. O projecto teria sempre que ter um nome concebido para tal propósito. Papercutz refere-se a arte Japonesa de cortes de papel, em semelhança com trabalho de gravação e edição que tinha com os temas. Inicialmente foi um processo bastante plástico mas tem se vindo a concretizar em algo mais musical, em estúdio e ao vivo. Os dois pontos surgiram porque a designer responsável desde sempre pela nossa componente visual, Susana Maia, queria que o nome tivesse algo de diferente na sua representação gráfica.

Bruno e Catarina, os :Papercutz, fotografados por Maria Louceiro

Tantos ensaios, concertos e viagens pelo país fora com os :Papercutz certamente que lhe permitiram colecionar algumas histórias engraçadas e bizarras. Recorda-se de algumas que possam partilhar connosco?

Uma vez um técnico de som demorou 8 horas a completar-nos o soundcheck! Para quem possa ler a entrevista e desconhece, é um processo que se completa numa hora, talvez menos (risos). Descobri mais tarde, digamos assim de forma simpática, que estava alterado. Fiquei feliz quando tudo terminou (risos).

Na semana seguinte era o técnico convidado de um espaço de referência e o concerto era… :papercutz. Durante uns tempos brincámos sobre se ele iria estar presente sempre que chegávamos um dos locais dos concertos seguintes. Felizmente hoje em dia temos o nosso próprio técnico que faz parte da equipa.

Como surgiram as hipóteses de editar através de selos internacionais com a importância e a reputação da Apegenine Recordings, da Audiobulb Records, da Sounds Of A Playground ou da Kilk Records?

Claro que estamos a falar a um nível independente mas certamente existem muitas outras editoras mais bem reputadas que estas, no entanto o que aprecio nelas é o facto de terem uma estrutura pequena mas que apoia cada um dos seus artistas, sem qualquer tipo de discriminação. Nem sempre fazer parte de uma grande editora é positivo, muitas vezes é precisamente o contrário!

Nestes anos os :Papercutz atuaram em centenas de palcos um pouco por todo o mundo. Que palco/país/festival mais o surpreendeu? E qual ficou aquém das expectativas?

Muitos foram surpreendentes: já tocámos numa enorme praia, num forte medieval, num deserto, entre outros lugares. Felizmente nunca colocámos as expectativas num patamar inacessível e tirando questões técnicas em cima do palco, o que é normal acontecer, não posso dizer que tenhamos tido uma má experiência em algum desses eventos.

O importante é, como por vezes comentamos a rir, ainda por cima porque um dos elementos tem medo viajar avião, voltar vivos a casa.

O palco e o público dão, ou retiram, confiança a quem os enfrenta?

Na realidade, ambas as situações podem acontecer e até na duração do mesmo concerto. A minha atitude com o público é a tentar transpor o que melhor sabemos fazer, e deixo a eles o papel crítico e de participação.

Não somos muito de instigar reações propositadas, acho que isso torna todos os concertos iguais. Claro que é mais fácil quando este já conhece as músicas.

Bruno e Catarina, os :Papercutz, fotografados por Maria Louceiro

A vida de músico é feita de contrastes: da solidão que envolve a criação e a escrita de músicas e letras em casa ou no estúdio, à apoteose e loucura que pode ser estar em palco em frente a centenas de pessoas, por exemplo. É-lhe fácil gerir os pensamentos, as emoções e as expectativas ou todos estes altos e baixos (e variações de adrenalina) tornam a esta profissão numa autêntica aventura?

Engraçado que nunca me senti verdadeiramente afectado até este álbum. Sendo o terceiro registo de originais e como estive algum tempo sem mostrar nada de novo, existe pressão para que as pessoas possam reconhecer, o que achamos ter, o trabalho mais completo e rico até ao momento, mas isso pode levar a bloqueios criativos. Aconteceu durante o período de composição mas à medida que vamos apresentando os temas nas suas várias formas, vamos ganhando mais confiança.

Imagine que encontra uma lâmpada mágica e que essa lâmpada lhe permite pedir um desejo muito particular e que garante que nunca ninguém saberá que a usou. Com um estalar de dedos o Génio da Música pode fazer com que três músicas (de qualquer cantor/músico do mundo, de qualquer era e de qualquer língua) passem a ser uma criação sua (com todo o prestígio, reconhecimento, lucros e fama que isso traria, claro). Que músicas escolhia e porquê?

Sinceramente, nenhuma. Tenho alguma dificuldade em ouvir a música que faço e prefiro manter essas três ou mais músicas como o perfeito escape, e quem as compõem como inspiração. Isso vale muito.

Que músicas, álbuns ou artistas mais tem ouvido ultimamente?

No início da escrita do álbum ouvia muita música de cariz tradicional, de alguns lugares mais distantes como África e Japão. Recentemente decidi abordar essa perspectiva mas numa vertente mais direcionada para música de dança e electrónica, sobretudo por causa de uma mistura que terminei recentemente para a Red Bull Radio.

Em vez de uma lista de nomes, que são vários, destaco por exemplo uma vertente electrónica única que me fascina de nome Gqom, da África do Sul, como da editora Gqom Oh!, um formato cru e tribal ou mesmo música dos subúrbios de Lisboa com ligação às ex-colónias, presente no catálogo da editora Lisboeta Príncipe discos.

Que jovens bandas/projetos, portugueses ou estrangeiros, é obrigatório que o Ideias e Opiniões oiça assim que terminar esta entrevista?

Não diria propriamente jovens mas projectos com um caminho interessante e muito ainda por mostrar, e focando-me nos portugueses, diria: Batida, Octa Push, Niggafox, Lilocox e Sensible Soccers.

A que formato é verdadeiramente fiel: ao Vinyl, à K7, ao CD ou ao digital?

A nenhum na realidade. Não sou um colecionador típico de música. Qualquer um desses formatos tem a sua validade.

Em termos de comprar música ultimamente prefiro o Vinyl, pelo objecto em si e pela experiência que acarreta em casa. Tenho acesso gratuito a um serviço de streaming, por estar lá representado, que uso bastante e existem artistas amigos que me enviam os seus novos trabalhos, alguns ainda em CD.

Nunca gostei muito de K7s (excepto o seu potencial como podermos gravar as nossas misturas) mas percebo porque ainda se fabricam e se editam nestas trabalhos, mesmo em pequena escala.

Por falar em formato digital, encara o streaming como um aliado ou antes como um inimigo silencioso? O poder viral do streaming, e das redes sociais, é uma forma de potenciar o trabalho ou as receitas que daí advêm ainda não compensam essa aposta?

Como qualquer novo meio, tem os dois lados. O download ou streaming permitem chegar às pessoas de uma forma imediata, com muito menos custos, algo impensável há alguns anos atrás.

Mas a verdadeira aposta passa sempre pelo álbum em formato físico ou os concertos aos quais dedicamos uma boa parte do nosso tempo. Esse sim, o formato ao vivo, tem sido uma aposta porque podemos estender as ideias do álbum e fazer coisas um pouco diferentes em cada actuação.

O meu senão relativo ao streaming passa pelas playlists, e espero que as pessoas não caiam no erro de não aproveitar estes meio como potenciais de descoberta mas como um fim em si só. Caso contrário nunca vão sair da sua zona de conforto porque é assim que estas listas são preparadas.

Para finalizar em beleza: onde nos podemos manter atualizados sobre os :Papercutz?

Podem acompanhar-nos pelas redes sociais, claro, mas temos uma comunicação direcionada aos seguidores através de uma Mailing List, que mantemos faz alguns anos, e que podem aderir através do nosso site: www.papercutzed.com

 

Agradecimentos: Raquel Laíns, Let’s Start a Fire e :Paperctuz