Era uma vez na Índia – João Nogueira

Cabelo ao vento, língua afiada, perna esguia, sorriso só para quem merece.

Chamas-te Maria. Como a santa.

És virgem. Mas não como a santa.

Quando te vi, segui-te. Os outros, de quem não me lembro o rosto, quando te viram, seguiram-te. Eram muitos. Uns trinta. Ou quinhentos. Fizemos-te uma procissão. Como à santa.

Maria, de olhos grandes, muito grandes, que servem para me ver melhor. São castanhos. É-me igual, até podiam ser magenta. São para me ver melhor. Chega-me. E sobra-me.

Perdi os meus pais quando era pequenino. Não, eu não os perdi.

Eles morreram quando eu era pequenino. Os dois.

Era pequenino, mas não o suficiente. Se fosse um bocadinho mais pequenino, não me lembraria deles. Mas lembro.

E o vento assobia a treze mil quilómetros à hora a toda a hora no meu coração. Troveja. É Jesus a ralhar, como dizem  os velhinhos. Ralha no meu coração, com relâmpagos maus e raios que raios os partam. No coração ou em outro lado qualquer. Sei que o vozeirão de Jesus e os agudos do vento me abanam. Deixam-me a tremer. Aleijam.

Passaram-se duas dezenas de anos, centenas de meses e milhares de dias e não perdem o pio.

Há dias em que sou sem-abrigo de mim mesmo. Estendo a mão e peço-me esmola. Para ver se passa.

Não passa.

Às vezes, sempre ao domingo, perguntas-me se tenho saudades deles.

– Chora, meu amor. Chora tudo.

Descubro músculos no rosto de cada vez que choro. Estão duros, com as veias de fora. Levantam o haltere mais pesado. Sem fazer cara feia.

Fiz este hiato na tua caracterização porque eles merecem. O amor e o sofrimento entrelaçam as mãos com força. São gémeos. Falsos, mas gémeos.

Quanto mais amas, mais acabarás por sofrer. Dês tu as voltas que deres.

E sabes, isso é justo. O sofrimento mata-te aos bocadinhos, mas endireita-te a coluna. Dignifica-te. O sofrimento é uma forma estrambólica de amar. Porém, uma forma.

Mas, Maria dos olhos grandes, eu sou muito mais do que só isto. E mesmo quando sou isto, sou-o contigo. A fazeres-me festinhas. A estares em silêncio. A abraçares-me. A dizeres para eu chorar que me faz bem.

Maria, que tens a mania que és fina, posto isto, sou um homem feliz. Por um triz, mas um triz bem anãozinho, não acredito em Deus.

Deus estava a sair e eu a entrar. Não nos cruzámos. Homessa!!

Maria, que tens dias que também não és flor que se cheire, nem na Papua Nova Guiné há uma história de amor mais bonita que a nossa.

Talvez na Índia, por trás do Taj Mahal, numa perpendicular à rua principal de Agra, nas margens do Yamuna, haja uma.

Não. Nem aí.

Aí só começou.

Agosto dava as últimas e o meu molar também.

Um autodidacta, com jeito para o alicate, ou não, o Kailash, dentista de rua, salvou a minha vida. Não a do meu dente. A minha vida.

Foi sentada numa cadeira que rivalizava em idade com a Muralha da China, que te vi pela primeira vez. Estavas de boca aberta.

O molar abanava e eu estava na fila, atrás de um octogenário que não parava de te olhar para o peito. Para os dois, aliás.

Abanei a cabeça em sinal de desaprovação. Entretanto, olhei também. E por lá fiquei!

Híndi, mais híndi, hindi a torto e a direito. Era a Índia.

– Ahhh! Fooogo!

O dialecto não me era, de todo, estranho. À minha frente, tu. Cabelo anarco-sindicalista. De esquerda liberal. Cada fio era um Karl Marx a berrar contra o capitalismo. O cabelo desalinhado, sem ponta por onde pegar, mais bonito do mundo. Era preto.

Uma ou outra sarda, pele morena, olhos castanhos. Grandes.

O Kailash acabara de te subtrair um molar. Um que estava bom!

És portuguesa?

– Não, sou Cipriota, com raízes no Turquemenistão. (Irónica e com as duas mãos na bochecha direita)

– Desculpa. Era uma pergunta retórica.

(Não respondes. Sinto que ficas “a isto” de me mandar copular. Vais à tua vida)

Segui-te. Tinhas pelo na venta, falavas a minha língua e não me passavas cartão.

Era herege se não te seguisse. Eras a minha saída, o meu bilhete. Se perdesse o teu comboio, roubava-me a pouca vida que tinha. Eu sabia-o.

– Sou o Tiago. Do Porto.


– Maria. Do mundo. (em passo apressado)


– Maria do mundo, posso acompanhar-te? Tenho gomas. Das gordinhas.

(Sorris para mim. Não faleço porque não calha)

Caminhámos pela poeira, gozaste com o meu sotaque, gozei com o teu “Deus te salve!” e tu com o meu “biba!” depois de espirrarmos em uníssono. Disseste-me, a rir, que o meu molar estava por minutos, disse-te que quem te dera ainda teres o teu.

Falei-te do Gandhi. Disseste-me para não me esforçar para parecer erudito. Meti a viola no saco.

Esticaste o pescoço e riste-te da minha cara de parvo. De parvo não. De lorpa.

Baixei o pescoço.

Tinhas sandálias iguais às da minha mãe.

Nesse dia, o único em que estivemos juntos na Índia, amei-te devagarinho. Amei-te a olhar-te nos olhos. Uma, duas, muitas vezes.
Nesse dia, o único em que estivemos juntos na Índia, amaste-me devagarinho. Amaste-me a olhar-me nos olhos. Uma, duas, muitas vezes.

Bem-hajas, Vasco da Gama, seu descobridor do caminho marítimo para a minha ilha do amor!

Maria, que precisas de pimenta na língua, pedi-te, com olhinhos de carneirinho mal morto, para me deixares gostar de ti.
Triunfante, dificultaste-me a vida.

Daqui a dois meses, às quatro e trinta e três da tarde, se ainda quiseres gostar de mim, aparece em Picadilly Circus,  junto à estátua de Eros.

Começaste a chorar e pediste para eu sair.

Um milhão de fantasmas faziam excursões nos teus olhos grandes.

No índice da nossa vida, o primeiro capítulo terminou em Londres. Às quatro e trinta e três, com o Eros a espetar uma flecha no meio de nós.

Resgatei-te.

Resgaste-me.

Maria, que és do mundo, que és minha, os meus pais iam gostar de te conhecer. Não à primeira, se calhar. Mas iam.

Amo-te.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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