Ernest “Aventureiro” Hemingway

Com vista para a avenida Del Puerto, que desembocava no ancoradouro das rudimentares embarcações de pesca que abasteciam de peixe fresco os mercados da cidade velha, Hemingway levou o charuto à boca e com ar pensativo arrancou uma forte baforada, que encheu de fumo o exíguo quarto do majestoso hotel Baía de Havana, que reservara para dormir na noite da passagem de ano de 1952.

Soube que era tarde pelo anúncio das horas na Catedral de Havana que ecoava os sinos fazendo-os ouvir noutro extremo da cidade, como se disputasse com a Igreja de Santa Rita de Cásia, a presença na missa de Ano Novo, dos fiéis que àquela hora deviam andar a fazer compras de última hora na Quinta Avenida. Separavam-no da meia-noite, três horas, que era o tempo de acabar de se arranjar e descer ao bar, fingindo entreter-se à conversa se aparecesse alguém achando que, como o tempo é o que se faz com ele, era obrigação pará-lo mantendo suspenso o movimento dos ponteiros do relógio até decorrer tempo suficiente para porem todos os assuntos em dia.

Na reta final dum ano profícuo, a Hemingway ainda restava tempo para saborear o sucesso do mais recente livro, em que pusera do escritor à prova, lado a lado com a coragem dum velho pescador incapaz de arrastar para terra um prodigioso peixe de grande dimensão, capaz de arrastá-lo agarrado ao bote, para o fundo do mar das Caraíbas, aonde, a par de antigos naufrágios, encontraria associado aos ocorridos mais recentemente restos mortais de alguns seus antepassados.

Escolheu para sentar-se uma mesa discreta e à luz dum candeeiro sombrio abriu o bloco de notas. Escrevinhou um apontamento e focou o olhar nos presentes. Viu um casal distribuindo sorrisos e, perto deles, um americano dando ares de riqueza a quem não faltariam dólares para distribuir na remodelação do hotel dotando-o das condições necessárias a um empreendimento de luxo: no imediato, dois elevadores; ventoinhas de teto espalhadas nas áreas comuns; casa de banho privativa em todas as suites, sem torneiras que pingassem de noite interrompendo o sono; colchões macios nas camas de casal e, no seu em particular, uma poltrona confortável, sentado na qual, inspirado na paisagem dominada pela presença constante do mar, comporia o enredo a pensar nas personagens que gostaria de incluir no próximo romance.

Pela porta da frente, de súbito entraram folhas dum jornal, arrastadas furiosamente pelo vento como se as tivessem arrancado das mãos de alguém interessado na leitura das notícias que lá vinham. Hemingway levantou-se para fechá-la e perscrutou a rua, atraído pelo movimento inusitado de gente em direção ao Castillo de La Real Fuerza de la Habana, que era de onde, aos primeiros sinais do novo ano, começariam a chegar os grupos de foliões que há horas lá se concentravam para dar início às festividades, como se por esse facto pudessem iniciar-se mais cedo. Haveriam de passar outros trezentos e sessenta e cinco dias até novamente o Paseo de Martí se inundar de gente e diante do imponente edifício do Capitólio Nacional de Cuba, a par do fascínio de ver estalar o fogo de artifício, a multidão pudesse constatar a alegria de ver a vida desenrolar-se sem pressa, sem ter a preocupação de conhecer a origem das coisas, nem saber por que razão, ainda à noite, estava um calor que antecipava a chegada da primavera para dezembro.

Hemingway despediu-se dos presentes e subiu ao quarto. Interrompeu-o um funcionário do hotel que lhe serviu de bandeja um envelope endereçado ao Grande Escritor Americano que, na viagem, não dera por ter sido seguido de forma a descobrirem aonde se tinha hospedado. O sobrescrito era dourado e escrito a tinta permanente reconheceu de imediato a caligrafia de Miss Ellie, a secretária da embaixada do seu país. A marca mais distinta eram os o’s espalmados como se fossem objeto duma tentativa de silenciamento e i’s sem pinta como frases desprovidas de pontuação, cujo início podia confundir-se com o final doutra que significasse o contrário. Não fosse isso e, consequentemente, a ele próprio custar decifrá-la, já a teria contratado para passar a limpo os rascunhos dos textos que escrevia quando se deslocava àquele país, fascinante e de tantos contraste como motivos para achar que constituía perda de tempo ter de entregá-los em Nova Iorque a um editor que cuidava de organizar o manuscrito.

Não acharia significado num convite para jantar, que chegava tarde como uma tigela de sopa quente foi retirada da panela mas servida fria uma hora mais tarde. Pensou ler o conteúdo da carta mas preferiu rever a figura da secretária. Inspirado nela, diversas vezes pensara escrevera uma vez um romance. Miss Ellie era jovem, tinha uma silhueta elegante que decerto inspiraria nalguma mulher ciumenta o desejo de matá-la, dando origem a um policial. Era graciosa, de carácter sincero como ficaria bem à protagonista dum folhetim; de postura nobre que encaixava bem no papel duma princesa e resiliente como a heroína duma saga que, mesmo em condições adversas, sobreviveria bem resistindo à falta de água no deserto.

Dependendo do que mencionasse a carta, tanto poderia antecipar o regresso aos Estados Unidos, encurtando o período das férias em que não teria de se apresentar em sessões de leitura nem entrevistas, como prolongar a estadia em Cuba até aos festejos do Carnaval, a menos que alguém o convencesse a ir gozá-lo noutras paragens. Acendeu um charuto, mas desta vez o fumo envolveu-o ocultando na face algum indício do que estava decidido a fazer. Abriu uma garrafa de whisky e debruçado no varandim saudou aos foliões que desfilavam eufóricos erguendo as suas garrafas de champanhe e rindo como se não houvesse amanhã ou soubessem de antemão que, ante as dificuldades, tão cedo não teriam tão bons motivos para celebrar.

FIM

FELIZ ANO NOVO!