Escravo precisa-se!

Todas as histórias de um conto de fadas iniciam-se pela sui generis expressão “era uma vez” e é desta forma que vou começar a minha.

Era uma vez um pobre lunático que, como se não bastasse o facto de o narrador o ter apelidado como “pobre”, encontrava-se desempregado. Jovem e igualmente desesperado, ao longo do seu percurso pela inércia, já havia tentado de tudo… Acordava mais cedo que as galinhas – aliás, era ele quem recordava o galo para o facto de ter de cantar –, vestia-se como se fosse trabalhar, tomava apressadamente o pequeno-almoço, sentava-se à secretária, consultava as diversas ofertas de emprego na Internet e enviava inúmeros currículos, acompanhados das mais elaboradas e singelas cartas de apresentação. Desenvolvia esta rotina há alguns meses, porque tinha lido atentamente diversos artigos do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), os quais incentivavam ao exercício destas práticas. Contudo, o seu empenho foi em vão, não obtendo qualquer resposta das entidades recrutadoras e quando as tinha logo se decepcionava com o resultado, pois não passavam de respostas automáticas. Era frequente ler “Caro(a) candidato(a), agradecemos o interesse e confiança ao enviar-nos a sua candidatura, a qual mereceu toda a nossa atenção. Obrigado pela atenção dispensada. Melhores cumprimentos.”. Desanimado e frustrado decidiu mudar de estratégia. Há algum tempo atrás, aconselharam-no a entregar currículos pessoalmente, uma vez que, e parafraseando o conselho dado, “assim a entidade patronal vê que não és preguiçoso e de certeza que te chamam para uma entrevista”. Mais animado seguiu à risca a sugestão, porém o resultado foi idêntico… Nada. O que estaria o lunático a fazer de errado? Nem o narrador sabe…

Todavia, a sua vida dá uma reviravolta quando se cruza com o seguinte anúncio na Internet:

Escravo(a) precisa-se! (m/f)

Estamos a seleccionar para entrada imediata, escravos para promoção e distribuição dos nossos produtos através de uma abordagem directa ao cliente, porta à porta, no Egipto e arredores.

Perfil:

  • Idade mínima 18 anos;
  • Experiência na área (factor preferencial);
  • Disponibilidade imediata;
  • Licenciatura (factor mais que preferencial);
  • Forte motivação para atingir objectivos;
  • Responsáveis e assíduos;
  • Forte desejo de crescimento profissional;
  • Fluência em várias línguas (factor mais que preferencial).

Oferecemos:

  • Bom ambiente de trabalho;
  • Integração em equipa jovem e carismática;
  • Pacote comissional atractivo;
  • Possibilidade de part-time ou full-time, de forma a conciliar com outras actividades.

As candidaturas devem ser enviadas electronicamente para [email protected] acompanhadas de Curriculum vitae actualizado e detalhado, carta de apresentação e foto de corpo.

Após a leitura do anúncio, o pobre lunático não pensou duas vezes e decidiu tentar a sua sorte, munindo-se para o efeito dos elementos necessários para formalizar a sua candidatura. Para sua grande surpresa contactaram-no nesse mesmo dia para a realização de uma entrevista no dia seguinte. Invadido por um misto de sensações compreendidas entre a felicidade e a esperança dirigiu-se para o local da tão aguardada entrevista. Esta foi um sucesso e primou, entre outras coisas, pela rapidez e simplicidade.

Moral da história: o pobre lunático foi contratado, alterou finalmente o status do Facebook para “Escravo na empresa XPTO” e foi despedido um mês depois, tendo sido substituído por outro lunático. Ah! E não obteve qualquer remuneração.

Embora na NOS (diz-se nós, mas lê-se nus) refiram que existe uma linha que separa isto e aquilo, neste caso em particular, a ficção da realidade, uma leitura mais atenta ainda permite-vos compreender que talvez não me afaste assim tanto da realidade, infelizmente. São diversos os anúncios de “emprego” deste tipo, basta consultar para isso páginas como o IEFP, Net-Empregos, OLX, entre tantas outras. Com uma taxa de desemprego jovem em Portugal a rondar os 35,4%, são muitas as pseudo-empresas que se aproveitam do desespero alheio. A estratégia é simples: obter lucro sem olhar a meios e escravizar porque se “este não aceita, outro não se há-de importar”. E não é que têm razão? São muitos os jovens que aceitam laborar nestas condições e tal não deixa de ser assustador, porque a continuar assim, não há qualquer fim à vista para estas pseudo-empresas. Se todos se indignassem, se todos recusassem, se todos protestassem no acto da entrevista, se… se… Talvez o panorama mudasse, estou errado? Creio que não. Da mesma forma que critico esta aptidão para a escravatura em pleno século XXI, também critico o sistema de procura e oferta de emprego, o qual prima pela desregulação. Este encontra-se repleto de falsos anúncios de emprego, os quais têm objectivos específicos, seja preencher as bases de dados para a realização de estudos de mercado, roubar ideias e portefólios, assim como garantir visitas diárias aos sites anunciantes. Além disso, primam pelo desrespeito à lei laboral (sim, ela existe), ocultando a remuneração ou colocando-a abaixo do salário mínimo nacional. Por esta razão é necessário que se criem meios de fiscalização sobre os anúncios colocados nestas plataformas, de igual modo dever-se-ão sancionar as empresas que infrinjam a lei e ainda tenham a ousadia de referir que o vão fazer. Mas enquanto ganhamos varizes de tanto aguardar que o governo actue devemos, como primeira medida, ganhar coragem e dizer não a este tipo de anúncios. Este é o meu desejo e a minha sugestão para 2015!