The walking fan

Se disser que Diogo era o maior fã da série “The Walking dead”, mentir-vos-ia. Porque para ele era mais que ficção, era mais que uma história, era a sua vida. Por isso, quando um panfleto lhe revelou “the ultimate waking dead experience” sentiu o chamamento do destino. Poderia  finalmente descobrir a resposta para a questão que ecoava desde sempre na sua cabeça: Quem era Diogo? A empresa que conheceu na Net gabava-se disso mesmo, de ser uma “experiência apocalítica reveladora”.

Diogo esperou, trabalhou e juntou o necessário dinheiro para finalmente tornar realidade o seu sonho.

Quando o dia chegou, sem nada dizer a ninguém, partiu. No ponto de encontro mais três aventureiros aguardavam. Mas, da empresa ou de algum funcionário da mesma, nenhum vestígio se fez firmar à vista de qualquer um deles. Esperaram, esperaram, e nada encontraram. Teria sido um embuste? Não ousavam dar voz à dúvida para não lhe dar consistência. Já noite, cansados e sem muita fé, viram uma fogueira ao longe, e decidiram desde logo segui-la.

Correram o mais depressa que conseguiram, correram mais de uma hora, mas quando lá chegaram perto, da fogueira não havia sinal.

João, o mais extrovertido, soltou alguns palavrões. Tinha vontade de bater em alguém, os outros acomodaram-se no chão com vista a passarem a noite. Respirava-se fracasso e desilusão naqueles tristes corpos cansados.

Eram três da manhã, todos dormiam sob os barulhos da natureza. De súbito, um barulho acordou João, que depressa todos alertou naquele seu jeito tão tipicamente nortenho. “Foda-se!!! Que é que foi isto?”, disse ele. “Não ouvi nada, deixa-me mas é dormir?”, disse Tiago, com os seus headphones ainda enfiados nos ouvidos. Mais crente foi o nosso Diogo, que depressa se levantou quando viu uma luz acesa ao longe. Parecia vinda duma casa perdida nos montes.

Com a mesma pressa, todos, que é como quem diz Diogo, João, Tiago e Andreia se fizeram ao caminho. Imbuídos do mais puro espírito de aventura.

No entanto, a luz apagou-se, e eles ficaram sem norte perdidos no meio daqueles montes onde se reza a história que quem manda são os que lá estão.

Sem alternativa, pernoitaram naquele exato local. Mas quando acordaram, não havia mais nada que os sacos-cama onde descansaram. Toda a preparação e provisão tinha sido roubada enquanto dormiam. Não havia bússola, provisões, câmaras, roupa anti-zombie, binóculos ou qualquer utensílio que tivesse sido salvo da fúria do ladrão.

Cansados, irritados, mas acima de tudo, perdidos. Gritaram uns com os outros, duvidaram uns dos outros, e desesperaram todos por uma boa metade do dia. Na outra metade procuraram algo para comer, e nada encontraram quando já a noite beijava o dia em sinal de despedida.

E ela começou tranquila, apesar do nervosismo, até que não estava frio, e até conseguiram assar umas bolotas que tinham por lá encontrado. Num ambiente de confraternização, de histórias infindáveis, eles relembravam episódios passados da sua série favorita.

Tudo estava bem. Tudo estava mal. Foi assim mesmo, de repente tudo se precipitou. Quando a escuridão noturna se fez ouvir, quando o vento trazia mais que ar, quando barulhos vindos de norte e do sul, do este e do oeste os deixaram indefesos. João, o valente, agarrou numa arma improvisada feita de ramos. Diogo, mais calmo, tentava perceber donde realmente vinha o som, sem resultado.

Assim passaram toda a noite sem dormir. No dia seguinte, muitas questões por responder.

“Talvez isto seja a experiência?”, disse o racional Diogo. “Que raio de experiência, deixarem-nos aqui ao frio, com estes barulhos… foda-se!!! E vocês viram algum zombie?!?! OUVIRAM BEM, EU QUERO QUE ESTA MERDA SE FODA!!! QUERO ME IR EMBORA!!! QUERO COMER!!!”, bradou aos céus João.

Mais calmos, Tiago, Andreia e Diogo foram tentar pescar algo no pequeno lago que conseguiram descortinar por entre a forte vegetação.

A cana improvisada teimava em nada apanhar, até que num ápice, estremeceu, finalmente iriam comer, finalmente alimento, finalmente um… zombie. Sim, o zombie-figurante por que esperaram dias apareceu, e um susto a todos pregou vindo da água. Do susto ao alívio, do alívio ao riso, em poucos segundos estavam felizes.

Fugiram dele, o jogo tinha finalmente começado, aquilo para o qual esperaram e desesperaram dava o tiro de partida. Correram de imediato para contar a boa nova a João, correram felizes, correram com norte, até que encontraram algo que nunca pensaram.

João gritava. João estava a ser comido. João tinha não menos de  cinco seres a comer a sua carne. Zombies, não figurantes, sim, verdadeiros zombies arrancavam com ferocidade a carne do corpo de João. Não era uma brincadeira, não era ficção, era real, eram reais, sem porquê ou causa, sem razão ou racionalidade, eles existiam e vinham de encontro aos outros quando Andreia acompanhou João nos gritos.

Não sabiam neste momento o que pensar, não sabiam onde estavam, e com toda a certeza, não sabiam o que se estava a passar. Apenas, correram. E correram. E correram. E não mais pararam durante o tempo necessário para alcançarem uma suposta segurança.

“O que foi aquilo?”, perguntou a tremer Andreia aos outros. Obtendo silêncio de volta. “O QUE FOI AQUILO?”, tornou a perguntar de forma veemente e ainda mais trémula.

“Zombies”, respondeu Diogo. “Zombies?!?!? Zombies são fruto da ficção. Zombies são fruto da ficção. Zombies são fruto da ficção”, diziam os lábios de Tiago para se convencer a si próprio de forma incessante.

A calma de Diogo tinha uma razão. Ele sabia o que fazer, preparou-se para o fazer, e agora só o restava fazer.

Dez noites contadas passaram, quando a salvo se pensavam, tentavam fugir, mas para descobrir um novo grupo de algo parecido com zombies prontos a aniquilá-los à sua frente.

Mas na décima primeira noite foi pior, de todos os lados surgiam, de todos os lados vinha a ameaça, seria o fim, não fosse novamente a luz do quarto daquela pequena casa perdida nos montes. E com esta nova direção fugiram e se refugiaram lá dentro, aproveitando a hospitalidade duma porta aberta, que sem demora foi fechada.

Podiam respirar novamente. Começaram então a procurar algo para comer, e encontraram. Armas para combater, e encontraram. Camas para descansar, e encontraram.

Depois de segurarem o perímetro da casa, de todas as portas e todos os quartos, dormiram. Nada poderia correr mal, pelo menos por uma noite, mas correu.

Quando acordaram, não havia Diogo em lado nenhum. A porta estava aberta, três ou quatro zombies procuravam a sua refeição. E encontraram Andreia e Tiago. Com a perícia digna do seu ídolo, Andreia manuseou uma faca como se fosse a própria Michone, Tiago congelou e não foi de qualquer ajuda.

Antes que pudessem regozijar com a pequena vitória nesta batalha, viram um ensanguentado João a caminhar para eles. Parecia ter sido tomado para o exército contrário, eles preparavam-se para a luta, mas eis que ele falou. “Calma, caralho!!”, disse ele, “Não sou um caralho dum zombie!!”.

Depois de fecharem as portas todas, reforçarem a segurança e procurarem por todo o lado Diogo sem sucesso, discutiram o novo passo a tomar.

“Não podemos ficar aqui para sempre!!”, disse Tiago exasperado. “Por mim, podem ir. Mas eu não posso sair.”, retorquiu João apontando para os cortes que o dilaceraram.

Estas foram as últimas palavras de João, pois depressa Andreia, num golpe limpo e cirúrgico, separou-lhe a cabeça do corpo, algo que despoletou o histerismo de Tiago.

“Que é que foi que fizeste?!?! Estás maluca!!!”, “Ele foi mordido. Era só uma questão de tempo antes que se atirasse a nós.”, justificou-se friamente Andreia. “Mas de que é que estás a falar?!? Isto não é um filme, tu não sabes o que está a acontecer, isto pode ser apenas uma doença!!”. “Não durarás muito sem mim.”, disse ela, fria como a noite novamente.

Com medo dela, com medo sem ela, Tiago ficou.

Os dias passaram, os zombies não. Ainda assim, a cada dia que passava ela sentia-se mais em casa, sentia-se mais confortável em sair, sentia-se melhor a retirar cabeças aos pobres zombies que se lhe deparavam no seu caminho. Tiago por seu turno, comia o que ela trazia, e sair não ousava ele. Nisto, um mês passado. Ele vivia na ânsia de ser encontrado, ela na ânsia de não o ser.

Um dia, não muito diferente dos outros, ela trouxe um zombie para casa, com os braços cortados, lancetados, e sem dentes que os pudessem ferir. Ela sabia que ele tinha que crescer para a ajudar. Exigiu que ele matasse aquele zombie. Ele apenas soluçava. Era óbvio que Tiago não era material de sobrevivência.

Sem alternativas, ele percebe que poderia ter o mesmo destino de João, morrer pelas mesmas mãos. E aproveitando a camuflagem noturna, fugiu. Estava com sorte, a inércia tomava conta dos poucos zombies que existiam perto de casa. Correu então dali para fora, cortando as “silvas” que se lhe deparavam pelo caminho com as próprias mãos. Correu então dali para fora, rumo à liberdade. Correu então dali para fora, sem qualquer receio. Correu, correu, mas teve que parar, quando ficou de frente para um grupo de não menos de 20 zombies. Tentou inverter a marcha, mas não havia menos atrás de si, nem de ambos os lados. Ele estava cercado, enervado e condenado.

Gritou por socorro. Gritou agora por ela. Enquanto isso, os zombies estavam cada vez mais próximos dele. As garras, os dentes, o zumbido, faziam-no tremer, pedir clemência a alguma força que o salvasse. E ela apareceu. Ela apareceu. Andreia entrou naquela corrente de zombies feita, e matou um, matou dois, matou os que se lhe depararam no seu caminho, e mesmo os outros que não estavam.

Ela agarrou nele, e ambos saíram de lá a fugir. Mas ele tropeçou no nervosismo, e não mais correu, pois como é habitual nestas histórias, a perna quebrou. Os grupos de zombies amontoavam-se na procura da carne de ambos. A custo, Andreia lutava com um braço, apoiava-o no outro, apesar de nos detestarmos, se há coisa que o ser-humano detesta mais que a si próprio é a solidão. Mas pior que isso, detesta finar-se. E por isso, num assomo de sobrevivência e pragmatismo, Tiago retirou uma das facas trazidas por Andreia, e cortou carne, não zombiana, mas dela, de Andreia.

Andreia foi deixada para morrer, os zombies ganharam o seu alimento, e Tiago a sua sobrevivência.

Depressa chegou a casa, e sem pressa adormeceu.

Sozinho, acordou. Mas algo estava errado. Ele acordou numa cave, ao lado dele tinha duas camas, uma de cada lado, à sua frente outras tantas camas. Em cada uma delas, um dispositivo de administração de soro. Em cada um deles, restos dum líquido escuro. E cada um deles, a serem ministrados num corpo.

Quando voltou a si, reparou que estava preso à cama.

“Nunca pensei que fosses tu o sobrevivente?”, ouviu Tiago.

“Diogo? És tu?”, perguntou sabendo já a resposta.

Ps. A “prequela” desta história será disponibilizada nas próximas semanas. Bem como a sequela.