Estive na pele de um pedófilo e não gostei…

Existem certas situações na vida que temos plena consciência que irão ficar guardadas na nossa memória até ao fim dos nossos dias. Mas, por outro lado, existem outro tipo de situações que ficamos sem saber se as iremos levar connosco para a cova, ou se acabarão por se evaporar dos confins da nossa mente, passados alguns anos. Confesso que ainda estou meio intrigado sobre como qualificar a situação bizarra por que passei há alguns dias atrás – se será uma situação que se esvoaçará daqui a uns anos, ou se irá comigo para a cova.

Há alguns dias atrás, quando ia a caminho de uma farmácia perto da minha casa para levantar uma simples receita, constato que estou a passar pela minha antiga escola primária. Reparo que deve estar na hora de recreio, porque as crianças estão todas no pátio a brincar umas com as outras. Umas a jogar à bola, outras à apanhada e outras a brincar às escondidas. E toda esta conjugação de factores, levou a que subitamente desse por mim estagnado, em frente à escola, a observar as crianças a brincar.

O facto de ver as crianças brincar daquela forma, fez nascer em mim um sentimento de nostalgia, que me levou às imagens de quando, em vez daquelas crianças, era eu que estava ali com os meus 5/6 anos a jogar à bola, jogar à apanhada ou mesmo às escondidas. Senti que, aos poucos, essas memórias iam invadindo o meu cérebro, como se de uma praga viral se tratassem. Eu senti-me preso àquelas imagens. E, de repente, dei por mim a sorrir que nem um parvinho, enquanto agarrava com força as grades do muro da escola, a lembrar-me de que, ali, eu tinha sido muito feliz – sem bem que na altura, eu não entendesse muito bem o que significava ser feliz.

Mas depois, começaram a surgir imagens mais tristes na minha mente. Imagens em que eu era vítima de bullying, sem saber que isso não era uma coisa normal na escola. E dei por mim a cerrar os dentes com tal força, que a dada altura pareceu-me que me estava a transformar num lobisomem, e que estava pronto para saltar para dentro da escola e devorar todas as ervinhas que a pequena horta da escola possuí – que é uma coisa que os lobisomens vegetarianos fazem: devoram ervinhas de uma forma bruta.

Passados uns minutos, e lá acalmei e voltei ao presente. Talvez por ter traçado o meu limite quando dei por mim a roer as grades do muro da escola, e comecei a notar o sabor a ferrugem na boca. Não é que eu não tenha o boletim de vacinas em dia, mas com o tétano não se brinca… E pensei, de uma forma totalmente inocente: «Giro, giro, era eu tirar uma foto às crianças a brincar na minha antiga escola, e partilhar nas redes sociais para recordar os meus amigos e ex-colegas, a escola em que nós andámos!» E, sem pensar em mais nada, saquei do telemóvel do bolso e tirei a foto às crianças a jogar à bola. E, a partir daí, o caos instalou-se…

Um dos pais que tinha ido ver o seu petiz no recreio da escola – e que estava mesmo ao meu lado sem eu ter dado conta – começou a perguntar o que raio estava eu a fazer com o telemóvel na mão, apontado para as crianças a jogar à bola no recreio. Eu, sem qualquer malicia a correr-me nas veias, disse-lhe inocentemente que estava apenas a tirar uma foto para colocar na net. E o homem entrou num estado descontrolado de loucura extrema, e desatou aos gritos:

«Acudam-me! Acudam-me! Este sacana está a tirar fotos às crianças!»

Eu, meio aparvalhado e sem entender onde é que ele queria chegar com aquilo, disse-lhe num tom muito calmo e inocente:

«Ah, tenha calma… Estou só a tirar umas fotos, para mostrar aos meus amigos…»

E o homem começou a tentar tirar-me o telemóvel, empurrando-me e gritando alto e em bom som:

«Seu pedófilo! Acudam-me! Agarrem-me este pedófilo! Ele está a tirar fotos às crianças! Ajudem-me a tirar o telemóvel a este sacana! A este animal! Acudam-me!»

Com receio da confusão que se podia começar a gerar ali, naquele momento, tentei terminar com a loucura e gritaria, da melhor forma que encontrei, dizendo:

«Ei! Calma, calminha… Eu não sou nenhum pedófilo! Eu apenas gosto de ver as crianças! Gosto de as ver a jogar à bola, às escondidas e até à apanhada… Porque isso relembra-me quando…»

E o homem interrompeu a tentativa de me tirar o telemóvel da mão e retirou o seu mesmo telemóvel do bolso do casaco e começou a ligar para a polícia, ao mesmo tempo que disse:

«Estás tramado, meu sacana! Vais apodrecer na prisão por isto! Seu animal! Seu pedófilo! Ai gostas de ver as criancinhas a jogar à bola no recreio… Ai, gostas, minha besta! Eu quero ver se vais gostar de ser a criancinha na prisão!»

Eu, continuando ainda meio aparvalhado com o que se estava a passar, ainda retruquei em tom de brincadeira, o seguinte:

«Ah, isso só seria possível se eu fosse para a prisão onde estão os pedófilos do processo da Casa Pia. Eh, eh, eh!»

O homem olhou para mim com uma expressão de quem me ia fazer em bocadinhos, e começou a falar ao telefone:

«Estou? É da polícia? Olhe, eu precisava que vocês viessem até à escola primária, para prender um pedófilo! Como? Como é que eu sei que ele é um pedófilo? Porque ele está a tirar fotos às crianças no recreio! E ainda foi capaz de me dizer que gosta muito ver crianças, a besta!»

E foi ali que me caiu a ficha, e eu percebi o que se estava realmente a passar. Aquele homem estava a acusar-me de ser um pedófilo, e queria prender-me, quando eu apenas estava a tirar inocentemente uma foto para partilhar com os meus ex-colegas de escola, para que eles também tivessem a oportunidade de relembrarem os seus tempos de infância. Aquilo não se tratava de uma brincadeira: o homem estava convencido que eu era um pedófilo. Nisto, uma professora, apercebendo-se dos gritos do pai que estava ao meu lado, veio ao nosso encontro e reconheceu-me imediatamente – pois tratava-se de uma ex-professora minha. E disse:

«Ricardo! Há quanto tempo! O que é feito de ti? Olha, entra! Está na hora do recreio das crianças, e sempre podemos falar um pouco! E sempre podes constatar que a escola está igual desde a tua altura! Até as salas de aula estão iguais!»

Eu sorri, e aceitei o convite, entrando na escola. Antes de perder de vista o pai que estava a acusar-me de ser um pedófilo, ouvi-o a gritar ao telefone que eu tinha entrado na escola, com a ajuda de uma cúmplice! Estive 15 minutos à conversa com a minha ex-professora, e quando sai da escola e cheguei à rua, deparei-me com uma ambulância e alguns paramédicos de volta do homem que, há 15 minutos atrás, tinha-me acusado de ser um pedófilo, estatelado no chão, desmaiado. Ao que parece, ele acabou por desmaiar e bater com a cabeça no muro, assim que eu entrei na escola. Fiz-me de parvo e fui à minha vidinha…

E apaguei o raio da foto do telemóvel…

E espero muito sinceramente que o homem esteja bem…

E que a batida com a cabeça no muro, o tenha feito esquecer-se de mim…

E até para a semana, malta catita…

(Se entretanto eu não tiver sido preso, caramba… Mas se o Sócrates pode escrever cartas a partir da prisão, então eu também escreverei mais uma crónica “Graças a Dois”!)