**Estreia**Futebol e identidade – Francisco Duarte

Agora que o Europeu de Futebol já alcançou e ultrapassou o seu clímax, vivemos num momento de “ressaca” desportiva, não obstante o Europeu de Atletismo que decorre na Finlândia.

No entanto creio que para a alma mais curiosa fica a pergunta sobre o que é isto do futebol, de onde veio e porque é que nos toca de modo tão profundo que mesmo aqueles que pouco interesse têm pela “bola” acabam por sentir a tristeza de ver a seleção nacional perder?

A resposta à primeira parte desta questão é relativamente simples, se bem que relativamente enevoada. Veja-se que jogos de bola decorrem desde tempos muito antigos. Um salto à Wikipédia mostra-nos que já os gregos antigos jogavam jogos de bola em que o uso dos pés tinha um papel importante, e há registos de jogos similares na China remontando, provavelmente, até ao século terceiro antes de Cristo.

Contudo estes jogos não eram necessariamente similares ao que vemos hoje nos campos e nas televisões. Alguns inclusive só implicavam o uso dos pés em complemento das mãos ou até de um taco. No geral eram jogados de forma desorganizada por uma multidão que apenas queria divertir-se. Exceção, evidentemente, para os famosos jogos praticados na América pré-colonial e que estavam relacionados com as sangrentas religiões locais.

O futebol só se começou a tornar naquilo que conhecemos no fim da Idade Média, Por esta altura havia a tentativa de se introduzirem desportos nas chamadas escolas públicas inglesas (na realidade instituições privadas) e de os afastar das formas desorganizadas antigas, introduzindo regras e modos de jogo mais delimitados. Continuava a permitir algumas formas de violência, inclusive placagens e agarrar o jogador adversário, mas já havia conceitos de passes e posse de bola. Foi no século XIX que surgiram as noção de campo e fora de jogo, não obstante cada escola ter os seus próprios códigos para estes detalhes.

Por esta altura o jogo ainda não era especialmente popular uma vez que a maioria da população trabalhava doze horas ou mais por dia nos campos e fábricas, não tendo tempo ou interesse pelo desporto. A expansão e criação de interesse pelo desporto só surgiram realmente devido a dois fatores principais. Primeiro a expansão dos caminhos-de-ferro, o que facilitou as viagens e permitiu jogos entre diferentes escolas. Para além disso, mudanças na legislação do trabalho no final do século XIX diminuíram o número de horas de trabalho permitidas às crianças. Independentemente do facto de serem cumpridas à risca ou não, acabaram por oferecer aos mais novos o tempo para se dedicarem a atividades lúdicas, sobretudo ao desporto.

Eventualmente o desporto espalhar-se-ia pelo mundo, aos poucos tornando-se num fenómeno de inacreditável amplitude, e também num negócio de milhões. Mas como referi, as origens do futebol eram a parte simples da questão. Isto porque ainda temos de perceber o porquê de sermos movidos como somos pelos 22 homens que correm pelo campo.

ATENÇÃO: conteúdo científico!

Há uma noção essencial à disciplina científica da Antropologia que se traduz em duas palavras: “nós” e “outros”. Isto é a base da dinâmica de grupos e assenta na pedra basilar dos mesmos, isto é, o “eu”, o indivíduo.

O “eu” é distinto do “outro” enquanto elemento abstrato. Cada um de nós é um conglomerado de significados e perceções do espaço individual interno e externo. Ter noção disso e de que nos é absolutamente impossível “saber” no que os outros estão a pensar é essencial para o surgimento da teoria da mente, que representa capacidade de tentar adivinhar o que vai na cabeça de outros indivíduos.

Ficando isto assente, e apesar da extraordinária individualidade de cada um de nós, o facto é que não podemos viver sozinhos. Estamos inseridos num grupo, seja aquele em que somos educados, levados a absorver os ideais e cultura dessa comunidade, ou uma qualquer que adotemos como nossa, o que se chama de “sentimento de pertença”. Uma vez tendo noção de qual é o grupo em que nos inserimos, começamos a pensar nele como “nós”. Ora o que isto nos leva a fazer é a colocar de lado os grupos com que nos não identificamos, a criar uma barreira. Isto é descriminação, e gera a noção dos “outros”.

Esta noção é essencial para a Antropologia porque é a base da existência de grupos sociais distintos. Um grupo só pode existir por oposição a outros. Veja-se que a realidade consegue ser um pouco mais complicada. Por exemplo, cada pessoa vive com diversas identidades grupais. Não acredita? Então veja:

– tem um clube de futebol? Benfica, Sporting, Porto, etc?

– gosta de um hobbie por oposição a outros?

– é católico? Ortodoxo? Ateu?

– etc…

Evidentemente que cada um destes grupos tem um peso diferente para o que nos identifica enquanto indivíduo. E a noção de identidade nacional é algo bastante poderoso. Como animais que somos a noção de espaço vital move-nos a um nível instintivo, sentimos que precisamos de um território nosso, que não devemos partilhar com grupos rivais. E somos um animal social, como foi definido, pelo que este é um território partilhado, como fronteiras e uma população dentro dele.

Mas nação não é apenas isto. Existe uma história ligada a cada país. Existem mitos relacionados com a sua origem (quantas histórias associadas a D. Afonso Henriques são realidade e quantas são mito criado para engrandecer o homem e a nação que fundou?), e existem estereótipos que definem as pessoas que nela vivem. O estereótipo não existe apenas para diminuir o “outro”, mas também para criar características que pertencem apenas a “nós”. Por exemplo, o português gosta de sardinha e existe a tendência de dizer a um amigo que não goste deste peixe assado que não é um português como deve ser.

O peso de toda esta construção cultural cria uma sensação visceral, que nos move. E é por isso que as pessoas vivem estes jogos entre 22 atletas a correr por um campo atrás de uma bola, choram e riem, sentem a euforia da vitória e a tristeza da derrota. Não é que sejamos “nós”, a massa, a jogar ou a ganhar o dinheiro daqueles jovens, mas o brasão que trazem ao peito tem um peso maior do que as suas individualidades ou o nosso ceticismo criando então a barreira que nos separa dos “outros”, contribuindo muitas vezes até para anular pequenas disputas que possa haver no seio de uma comunidade. De alguma forma, o desporto competitivo ajuda a minorar tensões sociais, já que, ainda que temporariamente, existe uma trégua no grupo, unindo-se para apoiar a sua própria entidade.

O futebol é tanto um fenómeno histórico como cultural, e apenas ao conhecer as duas partes podemos compreender a sua dinâmica e complexidade junto dos adeptos.

NOTA: Obrigado a Flávio Simões pelas indispensáveis notas e observações.

Crónica de Francisco Duarte
O Antropólogo Curioso