**Estreia**Sweetie – A obtenção de prova e os limites à investigação – João Morais do Carmo

Numa sociedade profundamente computadorizada como aquela em que vivemos, experienciam-se fenómenos únicos que, ao longo do tempo, se transformam em grandes desafios. A tecnologia (sobretudo a internet) já não se dissocia da realidade social e, muito frequentemente, com ela se confunde, impulsionando não só os movimentos de desenvolvimento tecnológico que o fenómeno social requer per se, como também o contra-senso que se confere a hibridização entre o mesmo e os quadrantes sociais, quer isto dizer, a intromissão do fenómeno tecnológico nas diversas áreas específicas da realidade social

É nesta lógica, de chamar a atenção para a influência do poder tecnológico no quotidiano, que escrevo sobre o caso recente de Sweetie, a menina (virtual) filipina de dez anos. Criada pela ONG holandesa Terre des Hommes, a miúda virtual soube cumprir, de forma inequívoca, o papel para que foi criada: ser predadora de predadores sexuais de menores. O sucesso foi tanto que Sweetie conseguiu estar ‘’à conversa’’ com vinte mil homens, tendo sido abordada sexualmente por mil, três deles portugueses. Para além disso, Swettie, desta vez em sentido figurado, providenciou todos os dados recolhidos à Interpol, aconselhando o seu encaminhamento para as forças de investigação nacionais, incluindo, dado o envolvimento de cidadãos portugueses, a PJ.  Só através desta sucinta descrição do caso dá para perceber os parâmetros éticos da organização não-governamental responsável. Não só viola deveres de sigilo quanto a dados pessoais dos intervenientes, como formula pareceres ‘’registados com aviso de receção’’ à polícia internacional, promovendo também, mais recentemente, uma petição para forçar a atuação das autoridades nacionais a  punir os suspeitos.

Numa leitura inicial do caso, cai-nos o subconsciente para a leviandade com que se aborda sexualmente uma criança e indagamos sobre os perigos da internet, acrescentando em tom colérico que ‘’as nossas crianças estão à mercê destes hediondos atos’’. Contudo, passado o histerismo que uma notícia deste género propaga, é possível analisar o projecto da Terre des Hommes de uma perspetiva crítica em sentido estrito, patenteando os contornos sensacionalistas e, mais ainda, violadores de garantias constitucionais em sede de direitos fundamentais (no caso português, pelo menos).

Em primeiro lugar, independentemente de haver ou não legislação nacional ou internacional para o crime de ‘’turismo sexual de menores’’, a aposta prática deste projecto e os moldes em que foi implementado promovem a utilização do ‘’agente estimulador’’, que, no caso, consiste no enviesamento informático da conversa entre Sweetie (agente estimulador) e qualquer utilizador de uma qualquer sala de chat online. Pragmaticamente, qualquer cibernauta que chegasse à fala com a menina filipina, só pelo facto de ter iniciado a conversa ficaria sinalizado e sob suspeita, o que multiplicaria exponencialmente o número (vinte mil) divulgado. Todavia, o projecto, no sentido de se impor como ‘’mecanismo de grande utilidade para a investigação de futuros casos semelhantes’’, vai mais longe, provocando o interlocutor real, incitando-o a proceder à insinuação sexual e assim frustrando o propósito pelo qual se criou: combater a predação sexual de menores em sites de conversação online, visto que o próprio software as provoca. Eis que se coloca a questão, legítima, de como será possível combater um comportamento com outro similar. A resposta não só parece como é óbvia. Não se consegue.

Por um lado, estamos perante uma investigação que, como a Interpol comunica, ‘’deve ser reportada unicamente às autoridades competentes e especializadas’’. Por outro, estamos perante uma simulação virtual perpetrada por uma ONG que basicamente se funda na figura de uma ‘’prostituta virtual de dez anos’’, na verdadeira aceção da expressão.

Ainda em primeira análise, para além do acima referido ‘’agente estimulador’’, as reivindicações da organização holandesa em forçar a atuação das polícias nacionais, não faz conta com outro problema de orientação jurídica. Na verdade, não há vítima real, visto tratar-se de uma boneca informaticamente concebida. Supondo que um determinado homem se insinua claramente, propondo uma boa quantia de dinheiro em troca de imagens comprometedoras da criança, a verdade é que não se está a insinuar nem aproveitar de nada, a não ser de uma reprodução informática. Dir-me-ão que embora não haja vítima neste caso pode ter havido noutros ou poderá ainda haver. Correto! Então que se sinalizem os ‘’potenciais predadores’’, porque na verdade ainda não o são. Dir-me-ão também que há uma intenção clara do ‘’potencial predador’’ em insinuar-se à criança, presumindo-se que o faria com qualquer outro menor. Novamente correto! Porém, na verdade, o ‘’potencial predador’’ tem apenas intenção de se insinuar a uma criança virtual, que não existe, que carece de personalidade jurídica, que a lei não protege. Para se validar tal argumentação seria necessário que o legislador previsse crimes contra crianças virtuais, o que naturalmente não acontece.

Embora a carga emocional que o caso acarreta nos leve a pensar o contrário, a verdade é que tudo se situa no plano do ser, dos factos. Por maior assédio que possa ser feito a Swettie, não serve esse facto, por si só, de prova suficiente para a acusação de alguém, pois que Swettie não é ninguém, e este é um facto. Desta forma, e como já outros autores escreveram sobre este caso específico, não pode a lei portuguesa, como provavelmente não poderão outros ordenamentos jurídicos, punir quem quer que seja.

Em segundo lugar, e já no prisma social, é basilar a premissa de que projectos com este teor fomentam massivamente o medo da internet, afastando as pessoas da comunicação e partilha online (conceito que muitas dúvidas me suscita, também). A espiral provocada por este tipo de informação produz nos grupos sociais a ideia de que não se pode confiar em nada nem ninguém, criando (quase, creio!) nas mentes humanas a impressão de um apocalipse de valores. E muito se diz e muito se continua a dizer e pouco se sabe e pouco se vai sabendo sobre isto e muito mais.

Em contrapartida, merece a Terre des Hommes uma menção positiva pela intenção do projeto, com claro intuito de despertar para a urgência da prevenção dos crimes de turismo sexual na internet, provando, sem olhar aos meios utilizados, que a predação sexual é uma realidade existente. Não deixar que crianças de dez anos frequentem chats de conversação online deveria ser o primeiro passo. Essa sim, a grande reflexão a fazer.

Por fim, é também urgente que se desperte para os efeitos nefastos que uma má investigação pode ter no plano jurídico e na esfera social, bem como para a fronteira dos limites deontológicos da obtenção de prova. Perceber que não se trata de ‘’pactuar com criminosos’’ nem que a culpa é do estado putrefacto da justiça, mas sim de seres humanos, que devem ser justamente julgados por aquilo que fazem e não por o que eventualmente teriam feito se as circunstâncias se diversificassem. No fundo, a ideia a reter é a de que, ao contrário de Sweetie, ninguém tem botão On/Off.

JoãoMoraisdoCarmoLogoCrónica de João Morais do Carmo
Quando os Deuses fazem greve…