Eu Tenho de Falar da Praxe OU Eu Fui Praxado Por Isso Sei do Que Falo – Carla Vieira

Olhem, eu não queria falar nisto. Não queria mesmo. Queria que aqui os meus colegas falassem nisso para eu poder estar descansada e não me chatear com coisas que valem pouco a pena. Infelizmente o mundo não funciona à base do que a Carla quer ou deixa de querer, por isso cá estou eu a falar da praxe. Ou falta dela. Ou qualquer coisa assim.

Na minha opinião pessoal (notem as palavras opinião e pessoal, porque isto é importante) agora que as criaturas do Meco morreram e estavam trajadas, fala-se da praxe de uma maneira que eu nunca ouvi. Temos por um lado os media a fazerem um trabalho pobre e distorcido do que é a prática praxista, embrulhando a tradição num manto de humilhações e perversidades que não retrata – nem de perto nem de longe – a realidade universitária portuguesa. Por outro lado temos um bando de camelos que acham a praxe a coisa mais maravilhosa de sempre e quem não gosta não sabe do que fala. Finalmente temos as pessoas entre estes dois extremos, as quais eu provavelmente não vou falar porque são aquelas que não acham bem atiçar o lume, porque isto já é mais um incêndio do que outra coisa. E fazem elas muito bem.

Portanto: quem acha que a televisão está a fazer um retrato fiel da vida na praxe levante o braço. Paizinhos, alunos do secundário, sim sim. Podem baixar o braço. Estão enganados. Aquela curta-metragem? Esperam mesmo que seja verdade que em dez faculdades e durante não-sei-quantas semanas, o realizador só tenha apanhado praxes más? Gente, o realizador tem sempre uma mensagem que quer passar. Acontece que este em particular quis passar a mensagem de que as praxes fazem mal à saúde, por isso não mostrou praxes calmas no filme. Isso não vende, não se esqueçam.

Pessoas pró-praxe: DASSE. Oh meus grandes deficientes, que outro nome não têm, mas QUAL é o problema de haver por Portugal pessoas que não gostam de praxe? Qual? Mas qual?! “Ah eu fui praxado eu sei do que fa–“ Sh. Shhhh. Não sei quem vos ensinou que cem porcento dos caloiros gostaram de ser praxados, mas infelizmente ensinou-vos mal. Lamentavelmente para o nome da praxe, muitos caloiros desistem da praxe pouco depois das aulas começarem. Ou não podem, ou não querem, ou não gostam, ou duas ou três.

“Ah mas os anti-praxe–“ Sh. Shhhh. Nem toda a gente que não gosta de praxe é anti-praxe, seus carneirinhos em pele de lobo. Anti-praxe são aqueles que não querem que a praxe exista. As pessoas que não praticam a praxe mas querem lá saber são chamadas de pessoas normais, com o mínimo de senso comum. Essas também têm direito à sua opinião, morcegos intitulados.

Agora vejamos as coisas da seguinte maneira: vocês podem chamar à praxe uma tradição de iniciação à vida académica, ou uma maneira de fazer amigos, ou lá o que é. Porreiríssimo. Problema: além de nós termos passado a vida inteira a fazer novos amigos desde a primeira classe sem que flexões fizessem parte desse ritual, algo me diz que os professores universitários querem saber puto de quantas cantilenas nós sabemos. E que eu saiba as aulas não são dadas em posição de três, ou quatro, ou cinco.

Corrijam-me se estiver enganada. Não? Bem me parecia.

Eu não tenho nada contra a boa praxe. Não a conheci. Conheci uma praxe aborrecida, parva, sem sentido. Conheci Doutores que tinham mais matrículas do que notas na pauta e que gostavam de gritar até a voz falhar. Conheci praxes que eram apenas fazer flexões, pôr-me de gatas de pé de gatas de pé de gatas de pé flexões de pé de gatas um dois três quatro cinco seis flexões de pé de gatas um dois três de pé… E aí por diante. Maravilhas para quem quiser perder peso, mas para isso existem os ginásios, onde a única Maria Amélia que existe é a senhora da recepção.

Boa praxe, no entanto, como falam de alguns cursos… Essa parece ser engraçada. Verdade seja dita, eu posso ter apanhado os dias mais aborrecidos porque ouço relatos de pessoas que adoraram o ano de caloiro. E pronto. Nada tenho a dizer a não ser que respeito isso, como espero que respeitem eu não gostar que me gritem e muito menos gosto de obedecer a ordens que não têm propósito a não ser a minha obediência. E ficam já a saber, conheci imensas pessoas e fiz numerosas amizades… Sem a ajuda da praxe! Sim, é possível! Vejam lá isto… Milagre.

Posto isto, não me acredito muito que a tragédia tenha sido consequência da praxe. Burrice, talvez. Aliás, muita burrice. Praxe? Porra, o instinto de sobrevivência devia ser maior do que a importância de um jogo parvo. E se não foi… Então foi burrice.

Crónica de Carla Vieira
Foco de Lente