Doces de Natal, música, monólogos e um prato a mais na mesa!

Lembro-me de quando era ainda mais criança. Desse tempo, que consigo situar entre os anos de mil novecentos e noventa e sete e dois mil e quatro, período que compreende o tempo dos meus três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove e dez anos de idade, guardo as memórias típicas de uma criança feliz. O trambolhão a jogar à bola, o pai a regressar do trabalho, o beijo de boa-noite quase sempre precedido de uma estória lida, embora saiba hoje que era quase sempre inventada. Não interessa. Dava-me a sensação de ter imensos livros, ou de ter um com imensas estórias.

Os dias eram sempre os mesmos, o eco do meu quarto, já a adivinhar que seria filho único, não se alterava, até à data em que mudaram a mobília sem me perguntarem. Afinal, uma criança de cinco anos não presta atenção às tendências da bricolage, o que lhe interessa é que tudo seja novo. Mesmo que mude para pior, o que importa é que seja novo. Assim fiquei sem a caminha com grades, sem a cómoda branca já meia riscada e sem o sofá de esponja, remendado inúmeras vezes. Jurei vingança pelo sofá. Passou-me, o novo era mais confortável.

Do meu aniversário, no calor de Agosto, até Dezembro, no calor dos cobertores de alta qualidade vendidos por um amigo e cliente assíduo da papelaria do avô, a rotina reinava no mundo pouco exigente de um miúdo que para contar os anos ainda só usava uma mão – ‘’Mas uma mão cheia!’’- como dizia a mãe.

No Natal, aí sim, já se sentia uma certa agitação, nem que fosse pelo facto de estarem lá em casa mais que seis pessoas de uma assentada. Tirando a quadra natalícia, o apogeu social do apartamento em que vivia dava-se no meu aniversário. O que também só aconteceu uma vez, não fosse a mesinha de centro da sala ter-se partido e o meu amigo, da altura, ter-se cortado no braço. Essa estranha agitação, à qual chamo hoje de síndrome pré-natal (não o das grávidas), misturava-se com o que realmente importava, pelo menos para mim, que tentava desesperadamente chamar a atenção de todos para anunciar do alto dos meus cinco anos que, desde o início desse ano e mesmo depois de terríveis pesadelos, nunca mais tinha urinado na cama. Contudo, não resultava, ninguém me ouvia porque todos falavam. Todos! E ao mesmo tempo. Foi aí que tive o primeiro contacto com as palavras ‘’contabilidade’’, ‘’economia’’ e – talvez acrescentando um ponto, como é costume nas estórias – com a expressão ‘’estado da nação’’. Era chato. Eu que passei um ano a levantar-me a meio da noite para ir à casa de banho, tudo em prole do meu comunicado de Natal, e ninguém queria saber. Beber vinagre, isso sim, resultou. E estragou a noite!

A partir daí, nos anos seguintes (pensava eu), tudo voltaria à normalidade. Jantar típico de Natal, abrir as prendas bem antes da meia-noite visto ser a única criança na família (é triste ter dezanove anos e saber-me, ainda, o mais novo), um pijama para o pai, umas meias para o avô.

Talvez tenha sido a primeira vez que falhei uma previsão, porque tudo mudou, e à medida que os anos passavam cada vez menos tempo durava o Natal. Pelo menos o meu, esse que eu imaginava. Comecei a perceber que o convívio familiar de Natal não mais passava do que um ritual forçado, com oferendas previsíveis já perpetuadas no tempo, – o avô já sabia que podia contar com um par de meias e o pai já sonhava, dois dias antes, em dormir enfiado no seu novo pijama – músicas de Natal, o famoso teatro organizado pelas crianças, conhecido como ‘’Teatro dos Primos’’, que na minha versão ganhava forma de monólogo, – houve até um ano em que tentei enveredar pelos fantoches, por uma questão de dinâmica – e umas quantas frases feitas a lembrar a pobreza, a fome e o tráfico humano, não esquecendo, claro, à boa moda de uma família cristã, o agradecimento pela refeição e pelas centenas gastas em presentes numa espécie de dança de ostentação social.

A partir daí, comecei a desconfiar das intenções do Natal, assumindo claramente a personificação. Esse Natal, já curado da fase do Pai Natal, dos presentes do Menino Jesus. Esse Natal, já consciente de que as prendas vinham do subsídio do Pai. Esse Natal, o meu, já não era o mesmo. Estranho é, que a cada centímetro que crescia menos me interessava por ele, o que depressa se propagou à família, suscitando em mim a dúvida sobre a origem desse desinteresse. Das duas uma, ou todos perceberam que não gostava do Natal e por isso não o celebravam com a alegria de outrora (ideia a pantear um narcisismo até aí não perceptível) ou simplesmente assumiram o fracasso das reuniões familiares.

Ainda assim, continuava a achar estranho. Embora não se vivesse a época natalícia (que ainda me lembro de não começar em Outubro, como hoje) freneticamente, desde esse ano, esse dos meus dez iguais, a consoada tornou-se mais intimista, sem discussões e apupos, sem comentários à indumentária de uma qualquer prima pela boca de uma qualquer cunhada invejosa e solteira. No final da noite, cedo, porque ‘’amanhã é dia de trabalho’’ (mesmo sendo feriado), o simples cumprimento de despedida pesava qual drama italiano dos anos trinta, deixando na atmosfera uma espécie de súplica de esperança propositadamente invisível e muda. Esqueciam-se eles que só as crianças de dez anos conseguem ver as súplicas de esperança propositadamente invisíveis e mudas. Contudo, a dúvida permanecia. Parecia que o Natal ia acabar. Que seria o último.

Hoje, recordo, com uma alegria capaz de fazer tilintar a iluminação de Champs-Élysées, esse último Natal. Não o meu. O último Natal de alguém. Que pediu para o ter dessa forma, sabendo ser o último. Que o soube fazer. Sim, que fez Natal, porque o Natal é feito, do que nós quisermos, mas é feito! E ela fê-lo, como se só ela fosse capaz de o fazer!

É esta a mensagem que vos dirijo neste Natal. Que o vivam como se fosse o último, que o façam vosso fazendo-o para todos. É isso o Natal!

Feliz Natal!