Conto de Natal – José Ligeiro

“Eu era miúdo e sentia-me bastante feliz no momento. Mais até que o que habitual. Á já alguns dias que sabia que era uma época de festa, pois familiares que não via habitualmente ligavam pelo telefone aos meus pais ou vinham propositadamente visita-los a casa.

Sem ser intencional, já tinha visto vários volumes a serem carregados pelos meus pais ou avós para dentro de casa. Tinha a noção de que iria receber presentes e essa sensação estava bem presente na minha face rosada. As conversas também se focavam em redor do mesmo assunto: o Natal e o ano novo. Para mim, esse momento era de extrema alegria dado que iria renovar o meu lote anual de brinquedos.

Não compreendia porque apenas naquele momento se sentia uma diferença substancial nos sentimentos pessoais das pessoas à minha volta, mas notava-se bem através dos sorrisos que todos faziam e pela cordialidade que tinham de uns para com os outros. Como criança, fazia-me alguma confusão tanta amabilidade, apercebendo-me eu que durante o ano tinham havido varias zangas entre os presentes.

Tinha por ideia de que deveria ter algo a haver com o falecimento da minha avó materna e com o que ele deixara aos vários filhos. Lembrava-me de escutar conversas dos meus pais a criticar alguns dos familiares que agora estavam presentes para comer á nossa mesa. Não compreendia mesmo, mas o que me interessava eram os presentes a receber. As guerras entre os adultos não eram para eu perceber.

A hora de jantar chegara. A algazarra habitual em volta da mesa estava instalada e até eu contribuía para isso. Os meus outros primos também brincavam e corriam comigo à volta da mesa e outros móveis nas proximidades. Muitas vezes escutávamos o pedido para estarmos quietos, mas eramos crianças. Estar quieto era sinal de doença. O pedido tornou-se ordem em poucos minutos. Tratava-se de uma curta pausa.

Finalmente chegavam as nossas mães com as peças de cerâmica que poisavam suavemente na mesa como se fossem peças únicas e quebradiças. Instalava-se algum silêncio, sempre quebrado por um tio de nariz mais vermelho e com frases que nós não deveríamos escutar, mas que sem sabermos porquê as fixávamos.

Sentamo-nos. Alguém começou uma prece. Baixamos a cabeça e erguemos as mãos juntas bem em frente da cara. O cheiro do comer entrava pelo meu nariz fazendo concentrar a minha atenção no que estava por baixo da tampa cerâmica. Parecia caldo verde, algo de que gostava muito.

Alguém se riu a meio dos dizeres e outra pessoa fez “Chiu” prontamente. Eu ri-me, mas não deixei que outros se apercebessem. Finalmente, os dizeres acabaram e o burburinho começou. O ataque às conchas começou e estas eram apontadas às terrinas cheias de comer delicioso.

O meu prato foi cheio da minha sopa preferida da época. Deliciei-me a cada colherada que emborcava. Os meus familiares trocavam impressões de um lado para o outro da mesa. Havia risos que ecoavam pelo ar e todos pareciam satisfeitos. O meu pai bateu com uma faca num copo, levantou-se lentamente e dirigiu palavras aos presentes. Fez-se silencio, poisaram-se os talheres.

Os seus desejos de boas festas e feliz ano novo a todos os presentes pareciam ser bem recebidos por todos. Um forte aplauso surgiu espontaneamente por todos os familiares.”

Parou de escrever. Agora, de cabelo branco e pele engelhada pelo passar do tempo, de sorriso na boca e olhar focado no fundo da rua, elevou a chávena escalfada aos lábios e sorveu um pouco de café. Sabia-lhe bem o sabor do líquido preto com pouco açúcar que tomava. Aos 88 anos de vida, lembrava com prazer os seus saudosos tempos de miúdo vivaço.

Poisou a chávena bem no meio do pires, virou outra folha no bloco de apontamentos que trazia sempre consigo, agarrou na caneta e escreveu da forma como sempre começava as suas histórias: “Eu era miúdo…”

Boas festas a todos. Que a paz chegue à humanidade o mais rápido possível.

Caros leitores, deixem que vos diga que é tudo natural e sem espinhas.

JoséLigeiroLogoCrónica de José Ligeiro
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