Somos todos factores de risco

Todos os anos existem campanhas para levar mais pessoas a doar sangue. Todos os anos surgem, pelo menos uma vez, notícias sobre a falta de sangue armazenado que apenas chega para mais uma ou duas semanas. E muitas pessoas, por verem estas campanhas e notícias ou porque já davam anteriormente, dirigem-se a locais específicos para doar sangue…sangue esse que poderá ser fundamental para alguém.

Mas depois existem frases, declarações, de pessoas “importantes” (importante em cargo, porque pelo que disse mais valia estar calado) que dizem que “O contacto sexual de homens com homens é definido como um factor de risco”. Ao ler esta declaração do Sr. Presidente do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) pergunto-me se o senhor pensou bem no que disse? Ou apenas disparou?

Primeiro de tudo, não é o contacto sexual entre homens que é um factor de risco. O factor de risco está em ter relações sexuais desprotegidas – sejam entre homens ou entre homens e mulheres. Se o senhor refere que e um factor de risco por um lado, também tem de ser pelo outro. Ou estarei a pensar errado? O problema é o facto de as pessoas terem relações sexuais sem preservativo.

Todos sabemos que a orientação sexual não pode ser razão para discriminar alguém. Porém depois desta declaração parece que sim…mesmo que o senhor diga que “A homossexualidade não é assumida como factor de risco”. Ok, não é assumida como factor de risco. E também pode dizer que o contacto sexual de homens com homens pode acontecer entre heterossexuais, coisa que até aceito, não implicando assim a homossexualidade ou não da pessoa. Só que lá está, o contacto sexual entre homem e mulher pode também ser (e será talvez a maioria dos contactos sexuais) um factor de risco. Pode não, é um factor de risco. Sejam os intervenientes homo ou heterossexuais. Deixar uma probabilidade talvez maior do que a referida de fora da declaração, só pode ter sido esquecimento…

Já doei sangue mais do que uma vez. Já preenchi o questionário mais do que uma vez. Pela minha experiência, o médico vê o dito na diagonal, peso, tensão e diabetes, uma pergunta ou outra e siga. É certo que não dou nenhuma resposta que possa ser vista como um possível factor de risco e que não possa dar sangue. Contudo e se tivesse? Um possível factor de risco? O médico mandar-me-ia embora ou ia doar sendo que o sangue é analisado posteriormente?

Podemos ter relações sexuais desprotegidas mas ser pessoas saudáveis. Podemos ter múltiplos parceiros mas usar preservativo com todos eles. Podemos ter um novo parceiro sexual há menos de 6 meses mas usar preservativo. Estas situações são possíveis de acontecer. Até que ponto iria ser uma condicionante para doar sangue, não sei dizer porque nunca me aconteceu.

No site do IPST, no menu das Perguntas Frequentes tem esta bela pergunta, com respectiva resposta:

Mudei de parceiro/a sexual. Poderei dar sangue?

A mudança de parceiro sexual implica um período de suspensão de 6 meses. Todas a unidades de sangue colhidas são, conforme a lei obriga, submetidas ao rastreio de doenças infecciosas potencialmente transmissíveis pela transfusão de sangue (Hepatite B, Hepatite C, Sífilis e Vírus da Imunodeficiência Humana). Há comportamentos em que os indivíduos que os praticam estão expostos a um risco acrescido de contraírem uma infecção.

Esta avaliação é feita durante a triagem clínica pelo profissional de saúde, que analisa e decide sobre a elegibilidade do potencial dador de sangue baseando-se na evidência científica, nas directivas europeias e na legislação em vigor, tendo em conta as circunstâncias concretas que são apresentadas pelo dador.”

Logo, a crer pela resposta se tivermos um parceiro sexual novo ficamos “suspensos” 6 meses. Contudo diz também que o sangue recolhido é submetido ao rastreio de doenças transmissíveis pela transfusão de sangue e que a avaliação para a pessoa doar ou não sangue é feita pelo profissional de saúde, tendo em conta a lei, a medicina e a informação dada pela pessoa. Desta forma não percebi. Até que ponto é que os 6 meses podem ser “variáveis”? E de que forma vai o profissional de saúde confirmar se o que a pessoa diz é verdade?

A veracidade das respostas, seja a que pergunta for, é difícil de confirmar. Como é que sabem se temos ou não um novo parceiro? Como é que sabem se temos contacto sexual com homens ou mulheres? Como é que sabe se usamos ou não preservativo? É que falar, dizer coisas, verdadeiras ou não, todos podemos dizer. Será que agora é que falam da análise ao sangue, testes ou rastreio, que fazem antes do sangue ser utilizado? Não servirá esta mesma análise para analisar o sangue, de quem tem relações sexuais desprotegidas, seja entre homens, mulheres ou homens e mulheres, antes de dizerem que o comportamento da pessoa é por si só um factor de risco?

É que nós, homens e mulheres que doam sangue, vamos para ajudar, não para sermos criticados. Todos somos humanos, todos erramos (como é o caso do senhor presidente ao proferir tais palavras), todos somos factores de risco, seja por um motivo ou outro.