A Farsa da Constituição

Esta podia ser uma crónica engraçada, que impulsionasse a gargalhada presa na garganta dos leitores, aliviando o nó que lá está, não sei se fruto da contenção típica de quem não quer chorar mas tem vontade, se da corda que estica sem misericórdia por não sermos nós a puxá-la, num movimento de enforcamento forçado, vulgo, co-suicídio. Podia também ser uma reflexão nostálgica, sobre o que já fomos ou o que já fui, visto ser eu a escrevê-la, sem ousar discernir sobre consciências colectivas, se no fundo as houver, pelo menos mais que uma. Nesse mesmo fundo, se mais fundo for que o buraco que nos esconde, envergonhados e moribundos, podia esta ser uma crónica sobre assuntos reais, dos quais falam normalmente as crónicas. Mas não é uma dessas crónicas. De facto, nem sei se é uma crónica. Por não saber o que é, ou sequer se é, decidi dar-lhe um nome, qual invenção de produto ou desenvolvimento de conceito, porque é novo, e o que é novo tem nome. Assim fico a saber, tanto quanto sabem vocês… Nada.

Serviu este primeiro parágrafo para explicar o que se segue, apesar da aparente inutilidade. Vamos falar de farsas, ou de uma só. Essa que subsidia uma outra maior, que é a de que somos iguais, a de que ‘’esta merda é toda nossa’’ ou a de que ‘’o povo é quem mais ordena’’. Vamos falar da filha dessa, que podia ser filha de uma, não nos tornasse todos irmãos. Sem mais rodeios a apresento, qual dramaturgo de velhos costumes e brandas modinhas, ou vice-versa.

Interrogo-me, por vezes, se há ainda alguém que acredite numa Constituição, ou numa Ordem real, elemento regulador positivo que q.b. se agrega à moral, segregando uma norma que carece de fiscalização, por esse órgão que de Zeus se veste, num Olimpo de becas qual Palácio Ratton. É dessa resposta, ainda positiva, que vem o problema, arrebanhando-nos que nem cordeiros. Em continuação da metáfora, pastamos o que eles querem, onde querem e quando querem. Eles! Sim, porque há sempre um culpado, como dizem os antigos, um culpado que é sempre o ‘’Eles!’’, esse sim, abstracto e sem forma, que não respira nem sabe andar. Um ‘’Eles!’’ que não é ninguém a não ser ele próprio, personificado tanto naqueles que nos governam sem se saberem governar como naqueles que desgovernados governam sem saber. É a maravilha do elemento regulador, tosco e perro, que pensa andar num círculo recto, sem nunca se endireitar.

Posteriormente, vem a anexação à moral, que podia ser só para inglês ver não fosse querer dar espectáculo, género moderno de auto de fé para os nossos olhos. A segunda etapa desta farsa, ou segundo acto, marcando o cunho teatral enfadonhamente corriqueiro, serve-se assim, travestida de bons costumes, de uma moral assertiva, assente no mais correcto ou menos errado. E nós amamos a moral e viva a moral e pela moral tudo fazemos, numa dança de construção do epitáfio social, pena que seja o nosso.

Em terceiro lugar, nasce a norma e não a obra. O fruto de um inferno no qual todos pactuamos, como se a droga da farsa já nos tivesse encrostada na pele, em jeito de epidemia societária, da qual já não nos livramos, porque a criámos, e morremos, pela boca, que nem peixes. Assim esperamos pelo resultado, que já se conhece envenenado, mas vivo à nascença. Todos a bajulamos, que nem reis magos, porque achamos ser a salvadora, a voz da redenção do mal que concebemos, quando ela sabe que é o próprio anticristo social, a noite descrita nas epopeias. No fim de contas, armamento nuclear assinado por ‘’Eles!’’ e subscrito por nós.

No fim, o visto de entrada para a perpetuação da norma no tempo. Uma espécie de ritual de emancipação. Por Deus! Será que acreditamos mesmo em deliberações enviesadas, ancoradas por vontades pessoais sem sentido de estado ou em estado vegetativo, dos valores que proclamam, da ciência jurídica que estudaram, sem dormir? Esses vagabundos sonâmbulos que reconhecemos juízes, com todas as qualidades que têm, que julgam a norma viva com a mesma leviandade com que nos julgam a nós, ainda vivos mas por pouco tempo lúcidos, se nos mantivermos escravos do que nos forçam a ler, do que nos ensinam, prefaciando o elogio da mentira tanto quanto o nosso próprio entrudo.

Agora se percebe, depois de muito reflectir, ou até mesmo meditar, que uma crónica assim, ao ousar ser texto dramático sem didascália, apesar de não o ser nem o ousar, não passa de um anacronismo sem precedentes em moldes de morte anunciada. Sem querer ser crónica, é a crónica farsa da Constituição.