Feriados e Preconceito

Era o segundo serviço público a que ia nesse dia. Primeiro, burocracias pessoais. Depois, burocracias profissionais. Surpreendi-me – o funcionário atendeu-me com um sorriso, esclarecimentos cabais e tempo para todas as perguntas. Caminhando já fora da repartição, refleti, em jeito de autocrítica, que essa surpresa revelara uma subtil adesão ao preconceito contra o funcionalismo público – que surpresa havia em que tivesse sido bem atendido? Apesar de casos frequentes em que tal não ocorrera, não era a primeira vez que do outro lado do balcão havia alguém simpático e prestável. Lembrei-me das palavras de David Hume. Disse-nos o filósofo britânico, nas suas Investigações Sobre o Entendimento Humano, que “os homens, na sua maioria, são naturalmente inclinados a ser afirmativos e dogmáticos nas suas opiniões; ao verem os objetos apenas de um lado e sem terem nenhuma ideia de qualquer argumento que sirva de contrapeso, atiram-se precipitadamente aos princípios para que se sentem inclinados”.

Quando o objeto do nosso entendimento é outro ser humano, é particularmente perigoso cairmos neste dogmatismo. Um dos extremos desta atitude origina o ódio que se dá quando o outro não é olhado como indivíduo mas, ao invés, como mero exemplo de um conjunto que um determinado princípio previamente estabelecido obriga a desprezar. Se o ódio ontológico é uma das consequências mais graves do dogmatismo de que nos fala Hume quando o que esta em causa é o nosso entendimento acerca de outra pessoa, outra consequência, menos grave mas também relevante, é a deslegitimação prática. Nesta, não se trata já de odiar o outro naquilo que ele é, mas sim de, simplesmente, deslegitimá-lo naquilo que faz. É a atitude que conduz, portanto, a um tipo de preconceito subtil, aquele que conduz a conhecidos lemas como todos os taxistas são rudes, todos polícias são agressivos ou, no caso em apreço, todos os funcionários públicos são ineficientes.

Por um lado, o preconceito-ódio, chegado ao poder, conduz a massacres e genocídios. Por outro, o preconceito-deslegitimação, com consequências bem mais suaves, conduz a políticas públicas assentes em leituras imagéticas sem apoio em evidências empíricas. Pode aí, por exemplo, acabar com feriados sem nenhuma prova de que tal conduza a um aumento da produtividade, de acordo com uma certa discursividade assente numa procura de deslegitimação que, de modo mais ou menos frontal, acredita que os trabalhadores, sobretudo os do setor público, são uma cambada que tem de se esforçar mais, reclamar menos e ser posta na ordem. O regresso antecipado dos feriados é, assim, uma pedrada no charco deste sub-reptício preconceito.