Figurante da vida

Tenho andado verdadeiramente cansada. Sinto um peso esmagador no peito e o meu corpo sempre sem força. Não tenho tido tempo para mim, o trabalho suga-me toda a energia e dou por mim a chegar a casa e a deitar-me imediatamente. Há alturas em que fico muito tempo sem comer e, quando o faço, é apenas para conseguir uma réstia de força para o dia seguinte. Nunca pensei que um dia me tornasse nisto, nesta mescla de pessoa e trabalho que não tem tempo para mais nada. Já não saio com ninguém há imenso tempo, ando atarefada com esta rotina desgastante que não me leva a lado nenhum.
Hoje tive um dia verdadeiramente complicado. Tudo me correu mal no trabalho e quando cheguei a casa não consegui evitar começar a chorar. Não me lembrava da última vez que o tinha feito. Decidi pensar nisso e cheguei até ti. A última vez que chorei foi por tua causa e a partir daí esqueci-me de que tinha lágrimas para outras coisas. Mas também me esqueci que me é permitido sorrir de vez em quando, que posso ficar feliz com pequenas coisas que a vida me dá. Ando sempre com esta expressão que não deixa transparecer nada a não ser cansaço, como se carregasse um mundo invisível às coisas.
Já não nos vemos há mais de dez anos. Não sei como estás nem o que tens feito. Já sabes da minha vida e como ela se baseia no meu trabalho. E já sabes que continuo com esta hábito absurdo de escrever para ti mesmo quando não lês nada. Mas a verdade é que já não o fazia há imenso tempo e isso é bom (ou mau, dependendo da perspectiva). Ando tão afogada em burocracias e papelada que já não tenho pensamentos próprios. E logo eu, a rapariga que sonhava explorar o mundo, presa atrás de uma secretária o dia todo.Se ainda me lembrasse de como se ri, estaria às gargalhadas à minha custa.
Sabes, às vezes consigo ver o meu antigo “eu” atrás de mim. Continua com aquele mesmo ar sonhador, de quem quer e pode fazer tudo, com aquele sorriso irónico e ao mesmo tempo verdadeiro de quem sabe mais do que aquilo que quer dizer. E às vezes vejo-te chegar também. Sentas-te ao pé dela e começam a conversar animadamente como não tivesse acontecido nada. Consigo ouvir a minha gargalhada ao longe juntamente com a tua. Passaram demasiados anos e entretanto perdi todos os sonhos. Perdi os meus objectivos, a minha personalidade… Tornei-me uma “figurante” da vida, uma daquelas pessoas que vemos passar e a quem nunca damos importância porque nunca as iremos conhecer. Quando olho para o meu antigo “eu” sinto-me sempre a mergulhar em tristeza porque no fundo fui eu que deixei esta mudança acontecer. Acordo todos os dias sem saber quem sou.
Se hoje entrasses neste café já não saberias quem sou. Sentar-te-ias numa mesa qualquer a tomar um café e a olhar pela janela sem me veres ao balcão, com a cabeça apoiada na mão enquanto tento não adormecer. Deixei que a vida acontecesse enquanto me fingia ocupada. Foi como se todas as partes de mim tivessem chegado a tempo ao comboio menos o meu corpo. Fiquei para trás sem nada, de mãos vazias. Deixei de saber o que fazer de mim e fui andando pelas ruas ao sabor do acaso. E ainda assim nunca deixei de procurar a tua mão mais não fosse para que me pudesses guiar. De resto fui-te esquecendo porque o tempo fez com que o teu nome se enchesse de pó e as tuas fotografias perdessem a cor.
Passaram dez anos e já não (re)conheço nenhum de nós. Deixei de imaginar o futuro há muito tempo. Fiz tantos planos e acabei por ficar para trás. Duvido que as coisas possam piorar e então continuo neste ritmo. De vez em quando venho ao café. Antes procurava cafeína para me manter acordada mas já perdeu o efeito. Tenho medo de adormecer e ver novamente a vida passar-me diante dos olhos sem que eu dê por isso. Estou sem dormir há três dias, não como há dois e estou a braços com mais um copo a tresandar a álcool. Deve ser por isso que nos consigo ver juntos numa outra mesa. É por isso que te vejo agarrar na minha mão enquanto os nossos rostos se aproximam. Por fim beijas-me e eu não sinto nada, apenas o álcool a queimar-me a garganta enquanto nos ouço rir ofegantemente atrás de mim.

BárbaraBorralhoLogoCrónica de Bárbara Borralho
Riso sem siso