A Filipa e as…da minha vida – André Marques

Amora. Nome popularucho dado a diversificadas frutas pertencentes a famílias botânicas diferentes.  Amora. Também nome de região. De gentes com vida. Amora, passadinha a ferro por dois longos braços do rio Tejo. O rio mais extenso da Península Ibérica.

Segundo Osberno “É este um rio que desce a região de Toledo, e em cujas margens se encontra ouro, quando no princípio da Primavera as águas se recolhem no leito”

Tejo. O gigante dos mares que tanto enobrece a Margem Sul. O Tejo, que sabe a pudim de caramelo   no Inverno e a bolo de chocolate nas restantes estações do ano.

Amora. Passadinha a ferro por dois braços, como já identifiquei. Os braços que resguardam a Filipa. A protegem. Em conchinha.

A Filipa é minha mulher desde que nasci. Amo os nossos desejos. E não o materialismo desses sentimentos abstratos. Amo-a sempre, e não às vezes. É a minha missão enquanto vida. O que custa não é trabalhar. O que custa é amar. O trabalho é quase sempre precário. Já o amor, esse, é efetivo, e por tempo indeterminado. Não meto a carroça à frente dos bois, claro. Mas quero acreditar que é para sempre. Sou um grande admirador do amor.

Casámos em 2005. Numa igreja pequena. Com direito a pessoas e tudo. Casámos no dia em que mataram o António, personagem mítica da telenovela, Ninguém Como Tu, de Rui Vilhena. O dia em que também assassinei uma pessoa. A Filipa. Matei-a à traição; de prazer, de sorrisos, de abraços, de gestos, e de tantas outras coisas inexplicáveis. Dei-lhe uma. Dei-lhe duas. Dei-lhe três. Como só os Amorenses sabem dar. Festinhas na cara, malandro.

A minha história na Amora é recente. Conheço pouco, é um dado. E o escasso que sei, é da boca da minha falecida avó, Felisberta. De olhos mirradinhos, choradinhos. As mãos carregadas de solidão. O corpo pesado de experiências ligadas à terra.Brotamos para dar um novo sentido à vida das nossas mães. A protetora. Nascemos para dar um novo significado ao orgulho dos nossos avós. Os defensores. Nos avós reina a magia. São os responsáveis por trazerem de volta os sabores dos primeiros anos. A infância. A minha avó. Que Deus a tenha muitos anos sem mim. Que mesmo ausente, faz-se presente. Uma das coisas que me pediu antes de partir para o novo mundo foi para eu ter juízo e não me perder como alguns putos da Quinta da Princesa se perderam. Uma cambada de drogados, dizia ela.

Sei que os moradores da Amora, em tempos, foram homens do mar, carreiros, mateiros, moleiros, trabalhadores e lavadeiras. Passado e presente fundidos numa só região. Porque uma região sem um passado exemplar não é uma região com um presente futuro.

Quinta da Princesa. O meu bairro. Habitado na sua maioria por Africanos, nomeadamente Cabo Verdianos. É um bairro marcado pela criminalidade violenta. Mas não quero saber. É o sítio onde respiro sem reservas, onde a minha personalidade é transparente, onde posso andar descalço sem preconceitos alheios. É o sítio onde ainda posso jogar ao berlinde, à bola, com todas as pessoas. Onde me despenteio e me despenteiam. E sou feliz com os meus cabelos pretos e as minhas mãos brancas cal. Sem borbulhas, neste bairro composto por 21 prédios, três cafés, três mercearias, um Pólo comunitário, o programa de escolhas, um clube desportivo e recreativo, uma creche, uma escola primária e ainda uma oficina. Eu e a Filipa.

A Filipa que trabalha na associação “ Esperança “. Associação que batalha contra o abandono escolar e dinamiza o próprio bairro.

Passamos as tardes no café Golfinho. A beber cerveja. A fumar uns cigarros. Ao sol. À chuva. A ouvir o Grupo Ferro Gaita. A dançar as músicas típicas de Cabo Verde. Depois vamos até ao Coreto da Amora. É lindo. Rodopiamos. Quase fazemos amor.  Ao menos imaginamos. De mãos entrelaçadas, caminhamos até ao Moinho do Capitão. E depois descemos a Zona Ribeirinha. Felizes. O amor não ama com a razão. Ama através dos atos, dos afetos, da alma de todos os sonhos do mundo. Porque viver sem amor é morrer só, e ser feliz a forma mais autêntica de nos mostrarmos aos outros tal como nascemos. O arrependimento nunca, em caso algum, supera a loucura. A contrição domina a longo prazo. A loucura, apesar de sábia, é breve e irresistivelmente apetecível. Terminamos a viajem na igreja da Nossa Senhora de Monte Sião, situada no alto de uma colina simples. Beijamos a vida. Agradecemos o que temos. E regressamos a casa.

Pertenço ao Amora Futebol Clube. Apesar da crise de quase todos os clubes do distrito de Setúbal, estou ao serviço do clube desde a época 2010/11. Foi ajustado um novo treinador, a escassos jogos do fim do campeonato. Treinador que salvou o Amora da descida de divisão. Estamos a tentar subir a fasquia do clube, e com enorme sucesso em comparação a épocas passadas. Comemoramos 15 anos de futebol este ano.

Disputamos os jogos no Estádio Da Medideira. A Filipa delira com a minha prestação em campo. Sempre que pode, visita-me. Pertence ao grupo de 5000 pessoas que esgota o espaço.

Os nossos sonhos precisam de ser acarinhados. Sempre. Não sou nada enquanto pessoa, mas sou tudo enquanto sonho. Ser feliz é ser autêntico. Ser feliz é ter um caminho a descoberto, saber encontrar a alegria na vida dos outros. Se algum dia perder a Filipa, ao menos que a veja partir de forma feliz e melhor. Sou amado. Não posso ser ingrato. Do alto das minhas pernas gigantes, a vida não permite hostilidades.

Da minha vida faço um território glorioso e fértil. Construído à beira do nada. Com tempo. Com chão. Inclinado para o vento. No jardim estabeleço os galanteios mais deleitosos. Para que todos os vejam sorrir. Fortes, hirtos. Às ervas perversas, mato-as com a força de um machado. Num lugar onde ninguém as possa ver. Onde por vezes nem eu me encontro.

Admirar o amor com o coração é atingir um objetivo maior que a própria existência.

AndréMarquesLogoCrónica de André Marques
Crónicas Improváveis
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