Há vinte anos fomos a Londres. E ainda lá estamos.

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Foi há vinte anos. Vinte! Ninguém tinha barba. Ninguém tinha riscos na testa. Ninguém tinha pedras no caminho. Há vinte anos, havia pássaros a voar no peito de cada um. Muitos. Há vinte anos, não tínhamos mundo.

Mentira.

Há vinte anos é que tínhamos mundo. Cinco continentes e cinco oceanos cá dentro. Que é onde interessa.

Éramos vinte. Ou mais. Éramos um ror deles. Assim é que está bem.

Inglaterra. O sítio para onde apontávamos os máximos. O sítio que nunca mais foi embora de nós. O sítio onde ficámos. Quando viemos.

Saímos do Porto. À nossa frente, meia dúzia de dias. Atrás, mães com um Douro inteiro nos olhos. Em mim, isso tudo. Um rio, também. Igual ao da minha mãe. E uma pista. Que me ia levar a dar uma volta muito grande. A maior de todas. Que é a viagem que fazemos até nós. A que leva cada um ao estrangeiro de si mesmo.

Calças pretas. All Star vermelhas. Camisola com as cores todas do mundo. Quispo azul. E lá fui. Por ali acima. Cheio de medo. A inventar um Pai Nosso, agarrado a um terço que não tinha. Ao meu lado, a Sara. Igual a mim. O mar, lá em baixo, era uma boca grande. Para nos comer melhor. Para nos engolir. Mas não. Aterrámos. Respirámos fundo. E olhámos. Mas com os olhos todos.
Estava frio. E cinzento. Passavam brancos e pretos a correr. Falavam-se mil línguas. Vestiam-se mil roupas. Cheiravam-se mil cheiros. E nós para ali. Estátuas dos ombros para baixo. A cabeça era uma ventoinha. A andar de um lado para o outro. E a olhar. Com os olhos todos.

Foi há vinte anos. Caramba!

Éramos vinte. Ou mais. Em Londres. Que em mil novecentos e noventa e quatro era tão longe como Marte.

Ficámos em casas de famílias. Comigo, ficaram o Hugo e o Neca. Numa casa pequenina. Com muita alcatifa. E com dois velhinhos. O senhor e a senhora Currell. Ele muito grande. Ela muito pequenina. Sempre juntos. E a sorrir. De Portugal, só tinham ouvido falar de Madrid. Mas não levámos a mal. Tinham o sorriso. Nos lábios e no peito. E nas mãos, também. Encorrilhadas. Iguais. Que contavam a mesma história. A deles. Muito simples. Lua de Mel na Escócia. Uma ou outra viagem em cinquenta anos. E pouco mais. Nunca conheceram o mundo. Nem precisaram. Construíram um. Cheio de Venezas. Cheio de ilhas gregas. Sem Revoluções. Sem canhões. Sem mapas. Sem soldados. Com paz. Que é um sítio verde. Onde há rãs aos pinchos. E gaivotas a cantar.E lagos. Onde um Homem pode boiar, com os olhos fechados. Onde a luz alumia mais. E desse lugar ninguém quer sair.

Em Londres, cantávamos muito. O Paupério era o nosso maestro. E nós éramos os Filhos da Pauta. Um grupo de catraios a espantar os seus males ali ao pé da casa da Rainha. Um grupo de cachopos encantados com a vida. Um de nós, talvez o Lino, num café, disse ao funcionário, em português, que ele era um palerma. Rimo-nos muito. E muito alto. O senhor deixou-nos rir. A seguir disse que se chamava José. E que era de Aveiro. E nós calámo-nos muito. E muito baixinho.
Em Londres, tive azar. Percebi que não era o melhor do mundo a controlar os esfíncteres. A casa de banho era no quarto andar. Mas só aguentei até ao terceiro. Entretanto, nasceram-me Cataratas do Niágara nas calças. Pretas. Foi o que me valeu.

Em Londres e em Canterbury, vimos de tudo. E tudo junto. Punks, freiras, gente calada, gente a cantar, mulheres escondidas em burcas, mulheres com tudo ao léu, gente a falar de Deus, gente a falar de Maomé, gente a falar sozinha. Em Londres, vimos que o mundo é muito diferente. Mas é muito mais igual. Andamos todos ao mesmo. Temos é ruas diferentes para lá chegar.

Voltámos meia-dúzia de dias depois. Mas ainda lá estamos. Todos. Eu sou o de All Star vermelhas e de calças pretas.
Estou sempre um bocadinho em todos os sítios em que fundei uma dinastia nova à História do mundo que sou. Fecho os olhos e vejo-me em Londres. Às vezes em Lisboa. Outras aqui. O Homem, quando tem História, está sempre no sítio onde quer estar. Basta fechar os olhos.

Falo muito da viagem com o Sérgio. Já lá foi dez vezes depois disso. Eu fui mais três. Sempre à procura. Mas nunca mais encontramos aquela Londres. Procurámos nas mesmas ruas. Nos mesmos parques. Mas nada. Só existe em nós. Só vive em nós. Quando fechamos os olhos. E aí, nesse sítio, é a cidade mais bonita do mundo. Onde estamos sempre a sorrir. Onde estamos sempre  a olhar. Empoleirados uns nos outras. A abrir as persianas da janela que somos.

Foi há vinte anos. Éramos vinte. Ou mais. Éramos um ror deles. Assim é que está bem.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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