História do 25 de abril para mentes preguiçosas

No posto de comando instalado no Quartel da Pontinha, viviam-se minutos de grande nervosismo, patenteado nos rostos dos militares que aguardavam notícias, a todo o instante, das movimentações de soldados nas outras cidades que tinham aderido ao ideal da revolução.

Fora posto em marcha um plano para derrubar o atual Governo da República e o plano de contingência que havia para o caso de as coisas não se desenrolarem conforme o previsto, era ninguém voltar a casa, sob risco de esses militares serem capturados e deportados, em regime de presos políticos, para um campo de concentração sob o sol escaldante de um país africano, em condições muito diferentes às de qualquer outro para onde pudessem fugir, se chegassem ao aeroporto a tempo de evitarem ser apanhados pelos elementos da Polícia Política que haveriam de estar posicionados à sua espera.

Sentado na posição de telegrafista e de auscultadores colados às orelhas, o Capitão Otelo assemelhava-se a um piloto aos comandos de uma aeronave, de cuja perícia dependia desviar-se dos obstáculos que surgiam pela frente, visando não embater em nenhum deles para não destruí-la com as pessoas que seguiam consigo a bordo.

Tinha a face rosada e os olhos esbugalhados a olhar para um ecrã, duas grandes esferas que parecidas com as do Alferes Antunes, que estava separado de si por poucos metros mas imitava todos os seus movimentos, os quais seguia atentamente, como se fosse o exemplo do Capitão que ele devesse seguir para ascender militarmente na carreira e não o do camarada Tomás que, embora não passasse aos olhos de ambos de um burocrata, era mais novo do qualquer um dos que estavam naquela sala e já fora promovido a Tenente-Coronel.

Otelo tinha um jeito peculiar de falar que convencia os interlocutores da veracidade de tudo o que dizia. Era um daqueles militares de carreira que tinha mais anos de campanhas militares na Guiné e em Angola, de G3 em punho, do que anos de serviço tinha a maior parte daqueles Retornados a quem o Estado português foi obrigado a indemnizar e a reintegrar na Função Pública, logo após os anos que se seguiram ao vinte e cinco de abril de setenta e quatro.

Devolveu a alegria ao rosto de Otelo, a leitura breve de um telegrama que confirmava a suspeita dele, da tomada do edifício onde estavam os estúdios da televisão em Lisboa, pela tropas leais ao movimento que saíram do aquartelamento de Santarém e interromperam a emissão a tempo de ir para o ar um documentário produzido pela delegação norte em que era enaltecido o comportamento dos portugueses, muito arreigado às tradições e avesso às mudanças, desde os hábitos mais simples ao da mudança de Regime ou do Partido que queriam para governá-los

Era um texto de pouquíssimas linhas que chegou quando faltavam pouco minutos para serem catorze horas, pela mão do Major de Infantaria Diego, que se o tivesse escrito com a caligrafia indecifrável com que habitualmente assinava os seus despachos, ninguém conseguiria perceber que fora à hora a que na redação da RTP os jornalistas já preparavam o telejornal da noite, na abertura do qual a notícia que mais gostariam de dar em primeira mão, sobretudo dirigida às suas famílias, era a de que estavam de boa saúde e mal acabasse o noticiário, com a repetição dos resultados dos jogos da Taça de Portugal, seriam libertados e livremente poderiam pôr os pés ao caminho para regressarem aos braços das mulheres no aconchego dos seus lares.

Para os militares presentes na sala de comando do aquartelamento da Pontinha, nos arredores de Lisboa, tratou-se de uma conquista que mereceu ser comemorada efusivamente, com uma salva de palmas e uma mão-cheia de abraços à figura do Capitão que achou que só teria motivos para se sentir triste com os seus homens, se estivessem a festejar por outro motivo que permanecesse escondido e do qual ele seria o último a saber.

A seu ver, era urgente fazer o ponto da situação às tropas que tinham saído dos quartéis de norte a sul do país e em particular à posição que ocupavam no terreno os militares que vinham diretamente do Porto e a quem fora preciso convencer de que, mais animada do que a festa das Cruzes em Barcelos, justamente considerada a primeira grande romaria do Minho e onde gostariam de estar para assistir ao lançamento do fogo-de-artifício, seria aquela que dariam em sua homenagem os apoiantes da causa revolucionária quando entrassem, com os seus tanques e chaimites, de ar vitoriosos pelas ruas da capital.

Eram comandados pelo oficial Caldas que tinha a patente de Major, facto que ameaçava cobrir de razão quem acusava de ser fraudulenta, a começar pelo nome, uma revolução que ficaria conhecida para a história como sendo a dos … Capitães.

O contacto via rádio a partir do posto de transmissões, foi efetuado para uma posição que o Major Caldas naquele momento ocupava com os seus homens, na região entre S. Pedro do Sul e Castro de Aire, devido a um seu erro na leitura do mapa, longe portanto da estrada que assinalava a ligação mais curta entre o ponto de partida, que era a cidade invicta e a chegada, na capital. Estava naquela altura em grande embaraço, reunido com os seus conselheiros e oficiais, a quem tentava justificar o erro,  porque alguns deles insistiam que era melhor regressar à base, muito receosos das consequências de estarem a ir à mercê de um homem que comprovadamente não sabia por onde os levava.

No espaço de semanas, Otelo delineara um plano que poria fim a uma ditadura de quarenta e oito anos e devolveria o sorriso à boca dos portugueses, nem que fosse para rirem da figura ridícula que ele escolhesse para substituir o Professor Marcelo nas funções de Presidente do Conselho. Todavia, teria de ser uma pessoa da sua inteira confiança, idónea e responsável para assegurar uma transição pacífica para um regime democrático que decretaria o fim da guerra colonial, como umas das primeiras medidas de choque.

Ele achava que só se os acontecimentos não se desenrolassem conforme previsto, é que daria razão aos céticos que, desde as primeiras reuniões destinadas a contar espingardas, o criticavam por não ter arcaboiço para levar a bom porto um projeto de tão grande relevância.

Porém, quando foi lido o primeiro comunicado pelo Capitão que era porta-voz do movimento das Forças Armadas, já toda a gente sabia que não havia volta a dar e o povo, unido aos militares, tomava parte de um processo revolucionário em curso, ajudando a dar o passo inicial para a reintrodução da democracia em Portugal, que não significava um claro retrocesso, como defendia quem lembrava que o anterior período mais recente reportava a antes de mil novecentos e vinte e seis, praticamente ao início do século.

A única incerteza sobre o sucesso da operação, que ao longo do dia pairou no espírito rebelde do Capitão Otelo, foi provocada pela aparição ao largo do Tejo, de uma fragata que apontou os canhões na direção do Terreiro do Paço e fez temer o pior. Se pendesse para um dos lados e sem poder de fogo para ripostar, quem se lhe opusesse sofreria pesadas baixas e os danos causados pelos mortos seriam maiores e mais avultados do que os valores que, às famílias das vítimas, as companhias de Seguros da época teriam capacidade para pagar mais tarde, a título de indemnização.

Felizmente, para a maioria das pessoas as coisas acabaram bem e nem foi preciso a Marinha intervir com disparos de canhão, nem a Força Aérea aparecer à pressa para ajudar na fuga para o estrangeiro dos responsáveis do Regime que era necessário prender para julgar.

Iniciou-se na vida política portuguesa um novo ciclo que dura até hoje, semana em que se assinalam os quarenta e um anos do golpe de Estado, ciclo que só terminará no dia em que der lugar a outro. Até lá, façamos o melhor em prol da liberdade e respeitemo-la, para que ninguém mais tarde diga que o esforço não terá valido a pena.