Inveja sem malícia – Bárbara Borralho

Olho para ti e sinto inveja. Corrói-me por dentro ver-te em bicos de pés para chegares à prateleira onde sabes estarem guardados os rebuçados. Não pedes ajuda a ninguém, dizes que queres ser “independente”. Falas no crescimento e em como queres ser adulta. Perguntas-me sempre porque me rio quando o dizes e eu respondo-te sempre da mesma maneira: “quando cresceres realmente vais perceber”. Ficas irritada, cruzas os braços em indignação e bufas como um gato a quem acabaram de puxar a cauda.
Vives nesse teu pequeno mundo de fantasia sem saber o que te espera. Ainda não sabes, mas um dia vais ser adulta e vais enfrentar situações que nem sempre serão fáceis. Por agora olhas para os adultos e invejas o facto de terem carta, de chegarem às prateleiras mais altas, das horas tardias a que se deitam… Eu olho para ti e invejo-te precisamente pelo contrário. Não tens responsabilidades sérias que não envolvam repetir uma letra vezes sem conta para que a aprendas a desenhar, não tens de te preocupar em levar o carro ao mecânico, não sabes o que quer dizer a palavra “desemprego” ou “crise” porque vives nesse teu mundo de fantasia tão perfeito.
Gostava de voltar a ter a tua idade. Deixar de ver as minhas mãos enrugadas, o meu cabelo baço e as minhas profundas olheiras. Queria voltar a ter os joelhos esfolados, as sapatilhas rotas e a minha bicicleta vermelha. Gostava de voltar a esconder-me para não ouvir raspanetes, queria voltar a amuar para ganhar um brinquedo. Mas tu não dás valor a isso porque queres crescer desesperadamente, como se a vida fosse uma corrida e tu precisasses de ganhá-la. Não há prémio nenhum, não existe pódio algum para o qual possas subir e festejar as tuas conquistas. Metade das coisas que irás alcançar na vida só serão reconhecidas por ti mesma e sabes que mais? Isso chega. Não tenhas orgulho em demasia porque a humildade é cada vez mais rara e necessária.
Os teus dias são intermináveis. Passas horas e horas a brincar na escola. Chegas a casa com a bata cheia de terra e chocolate. Reclamas quando te dizem para ires dormir porque nunca estás cansada. No entanto, assim que encostas o rosto à almofada, adormeces de imediato e entras num mundo de sonhos. E ao ver-te assim, invejo-te novamente porque enquanto tu adormeces facilmente, eu dou voltas e voltas na cama numa tentativa falhada de esquecer os problemas com que terei de lidar no dia seguinte.
Digo-te que és o futuro do mundo e tu sorris. Dizes-me que um dia serás presidente e que irás fazer toda a gente feliz. Não é ignorância da tua parte, apenas ingenuidade. Talvez um dia venhas mesmo a mudar qualquer coisa. Pergunto-te se queres casar e respondes que não, que os rapazes são chatos e só sabem jogar futebol. Queres ter um gato e viver para sempre com os teus pais. E queres ter um smart porque a tua Barbie tem um e é “um carro fofinho”.
Quando cais tentas não chorar. Vejo os teus olhos encherem-se de lágrimas mas engoles em seco e dizes que está tudo bem e que não te magoaste. Depois encontro-te debaixo das escadas, a soprar para o arranhão na esperança que deixe de arder. Gritas a plenos pulmões quando o algodão embebido em álcool te toca na ferida. “Isso não ajuda”, dizes por entre gemidos. No fim tapo o arranhão com um penso cheio de cores e bonequinhos e tu sentes-te uma guerreira acabada de sair da batalha, com a espada em riste numa das mãos e o estandarte na outra.
Podia dizer-te tudo o que irás enfrentar ao cresceres. As borbulhas, as desilusões amorosas, os amigos que nem sempre o serão realmente, as pessoas que o mundo vai perdendo todos os dias… Mas tu não precisas de saber isso, não agora. Vais ter de descobrir o mundo por ti própria. Um dia vais aprender que nem todas as feridas são visíveis nem se desinfectam com álcool. Vais perceber também que nem tudo é mau. Um dia vais olhar para uma roda de amigos e pensar que estarão ali para sempre, vais apaixonar-te perdidamente e irás deixar de pensar que todos os rapazes são chatos. Um dia vais ter o teu carro, a tua casa e a tua família. E eu vou olhar para ti e pensar sempre a mesma coisa: “ainda ontem andavas em bicos de pés e agora estás crescida”.
Depois de muito tentares, não consegues mesmo chegar à prateleira. Olhas para mim sem dizer nada e eu apresso-me a pegar em ti. Tiras uma mão cheia de rebuçados e não posso deixar de notar que ficas chateada por não conseguires fazer tudo sozinha. “Não há mal nenhum em pedires ajuda, sabias?” Abanas a cabeça. “Os adultos não pedem ajuda”, respondes. “Até os adultos pedem ajuda de vez em quando.” Acenas afirmativamente e começas a desembrulhar um rebuçado que colocas na boca como se o destino do mundo dependesse disso. E mais uma vez invejo-te, sem malícia nem rancor, apenas com saudades de um tempo que sempre quis que passasse depressa.
Não corras, não te apresses. Vive nesse teu mundo de fantasia o máximo de tempo que conseguires. Escolhe vinte profissões diferentes, experimenta todos os travessões para o cabelo e brinca o máximo que conseguires. Mas ao cresceres (e é inevitável), faz com que cresçam contigo todos os bons valores. Não tenhas medo de pedir ajuda, não tenhas medo de errar. Quando o fizeres, usa a palavra “desculpa” com sinceridade. Não magoes ninguém porque tudo o que fazemos acaba por voltar para nós mais cedo ou mais tarde. Ouve a tua consciência, o teu coração. E acima de tudo, nunca deixes de comer rebuçados. É sempre bom termos dentro de nós um bocadinho da criança que um dia desejámos deixar de ser.
P.S. Prometo que para a semana volto ao estilo humorístico e aproveito para dizer que este texto era meramente ficcional, uma vez que a minha mãe ainda olha para mim como se eu fosse a menina dos rebuçados.

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Riso sem siso