Inveja – De onde vem, para onde vai, para que a queremos?…

Hoje escrevo-vos sobre a Inveja.
Não vos escrevo propriamente sobre o julgamento de valor que podemos fazer sobre aquelas ou aqueles que invejam outras pessoas, porque esse é exactamente um julgamento de valor que em nada beneficia nem a pessoa invejada, nem a pessoa que inveja, mas sobre o bem e o mal associado a este sentimento, que é um sentimento dos mais primitivos e arcaicos que o ser humano possui.

Mais uma vez saliento que “primitivo e arcaico” não se prende com um julgamento de valor, mas significa tão somente que a Inveja é um dos sentimentos primários do ser humano, um dos primeiros sentimentos humanos, que existe no bebé, e que aliás ajuda ao seu desenvolvimento. Arcaico, porque faz parte precisamente de um sentimento próprio das “origens” da personalidade humana.

Defendem muitos psicanalistas, e também eu o defendo, que o bebé se desenvolve em certo momento por “invejar” a sua mãe…Por outras palavras, ele “inveja” a autonomia e poder que a mãe, ou a sua figura materna mais precoce, possui, e que ele não tem. Digamos de uma forma muito simples que ele, bebé, “inveja” o poder que tem a sua mãe, sentindo que ele próprio bebé não o tem (precisa dela e da sua competência para a sua higiene, alimento, etc…). Ao nível do desenvolvimento, o bebé passa da “inveja primitiva” à admiração, e tenta “imitar” e reproduzir nele próprio aquilo que afinal era o motivo da sua “inveja”. Assim vai conseguir, pouco a pouco, fazer o mesmo que a mãe consegue, cuidar de si mesmo. Por outro lado isto só sucede porque o bebé percebe as suas limitações, que não consegue fazer isto ou aquilo, chora ou é tomado de tristeza porque não consegue, e inveja, ou admira, quem o faz. Depois caminha no sentido de conquistar ele mesmo, bebé, essa autonomia.

Tal como fará mais tarde um ser humano adulto, a inveja só é transformada porque a pessoa tomou consciência da sua tristeza ou de uma sua limitação, conseguiu encontrar finalmente o seu lugar no mundo, e olhar o Outro com admiração, quer consiga igualá-lo à sua “maneira” nos seus feitos ou na sua vida, quer não…aceita a diferença, aceita-se a si, aceita o outro e os seus sucessos, como as suas falhas.
Estas teorias e modelos assentam em pressupostos bem mais complexos, e não é objectivo deste artigo discuti-los aqui…Apenas lhes faço referência para tentar enquadrar esse sentimento primitivo e humano que é a inveja – um sentimento precoce e que deve ser obviamente transformado ao longo da vida do sujeito psicológico.

A inveja, no senso comum, prende-se com um sentimento negativo e inferior, que leva a fortes julgamentos de valor por parte do Outro, e que na verdade conduz o sujeito que deixa esse sentimento tomar conta de si a um estado de tristeza profunda, de insatisfação, e de “complexo de inferioridade”, que mesmo sendo colmatado por outros sentimentos e comportamentos também negativos, como o “desdenhar”, a maldicência, a fofoca ou a intriga, continua a ser negativo, e fornece ao sujeito apenas o caminho da tristeza e da destruição, sua e por vezes do Outro também.

Sendo inveja pura, na sua forma mais arcaica, pressupõe que a pessoa que inveja a beleza, inteligência, bens económicos, a família, os e as amigas e amigos, o sucesso, etc, etc, etc, tem dois caminhos:
1- O da transformação e sublimação necessária e desejada desse sentimento primitivo, num sentimento fantástico e “luminoso” de admiração pelo Outro;
2- O da inveja pura e arcaica, que apenas conduz à dor e à tristeza do próprio ou do Outro.

No primeiro caminho, todas e todos nós, seres humanos, tentámos ao longo do desenvolvimento enquanto seres, alcançar aquilo que vimos nos outros e de que gostámos. Quisemos para nós, e lutámos e tentámos mais e mais para conseguir; nivelamos o nosso querer e o nosso ser, “por cima”, elevamos a fasquia, e seguimos caminho.
Aqui, confrontamo-nos ao longo do trajecto com:
a) A hipótese de superarmos as nossas expectativas e ultrapassarmos o que desejámos para nós, habitualmente porque interiormente tomámos os outros como referencial positivo, modelos, a quem nada desejamos tirar, e desejámos alcançar o “modelo” via admiração e conquista pessoal. O bebé consegue autonomia com o seu crescimento, e alcançar os objectos que outrora viu primeiro a sua mãe a fazer, depois os restantes. A criança vai fazendo o mesmo, e fazendo as suas conquistas. Nos adultos é similar, quando corre bem e é saudável. Pela admiração se caminha e se conseguem coisas.
b) A hipótese de não chegarmos exactamente onde queríamos ou do modelo que seguimos em várias alturas da vida. Nesta hipótese pode e deve existir um encontro do Eu consigo mesmo, continuar com profunda admiração por todas e todos os que vão conseguindo o que quer que seja e salutar o bem que alcançam, ainda que nós não o tenhamos alcançado de forma igualmente satisfatória. Aceitação por quem somos, as nossa capacidades, as nossas limitações, e gostarmos acima de tudo daquilo que somos, daquilo que temos ou que não temos, ou até que perdemos,. Ainda que possamos ficar tristes por algo que não conseguimos ou perdemos pelo caminho, separar o “ficar feliz” por quem conseguiu, e aceitar as nossas conquistas. O que provocar dor, deve e pode ser trabalhado fora do contexto comparativo, ou seja não se baseando no que o Outro tem ou deixa de ter, mas naquilo que eventualmente possa constituir uma mágoa pessoa, que deve ser trabalhada exclusivamente connosco mesmos.

Ambas as alternativas deste caminho, transformam a inveja primitiva e arcaica, inerente ao ser humano na primeira infância, em Amor humano! Amor humano que admira, que se orgulha, que deseja o bem do seu semelhante e o de si mesmo, sem julgamento de valor algum, com admiração genuína.
Felizmente é o caminho frequentemente tomado por muitos, e uma obrigação diria eu de todas e de todos os que querem contribuir para um mundo melhor, para a evolução e crescimento da Humanidade, das sociedades, dos povos.
Um caminho que contraria a força negativa dos sentimentos que destroem, que nada de bom trazem a ninguém. Conquista-se o amor fraterno pelo Outro, e por Si mesmo, num crescente sentimento positivo de aceitação e conquista, respeito pela diferença entre as pessoas, pelos limites de cada pessoa e pela força imensa que cada um tem para os transpor, à sua medida.

No segundo caminho, o pior acontece. A inveja toma conta da vida de quem a sente, e pode causar danos irreversíveis ao Outro e ao próprio.
Neste caso não há alíneas que cheguem para perceber ou fazer perceber o mal que é causado, a ruína que se tenta infligir de forma inconsciente ou mais consciente, de forma prática e material ou ao nível dos pensamentos ( que na verdade são o que mais importa…e tornam-se materializáveis através das acções).
No entanto existem duas ou três alíneas, que descrevo rapidamente, porque me aborrece, sinceramente, abordar esta parte menos boa, mas acho importante fazê-lo:
a) A pessoa que inveja sente-se um “lixo” ao fim de certo tempo, com uma auto-estima terrível, em que o sentimento de inferioridade impera, fruto da inveja que nutre por Outro, com o qual não se consegue comparar, nem tem atributos que possam rivalizar com o Outro. Esta inveja faz com que as pessoas se sintam mal consigo mesmas, deprime e frustra de forma muito negativa. A pessoa não se conforma com o não conseguir algo que o Outro tem ou é, não se aceita a si mesma, não consegue admirar o Outro, só invejar na verdade, e depois pode, ou não conseguir estratégias que resolvam o seu estado quase permanente de sentimento de inferioridade e tristeza. Por vezes sente-se apenas mal…outras vezes torna-se uma pessoa profundamente triste consigo mesma…
Neste caso, a pessoa deve procurar ajuda técnica, porque isto pode ser um sofrimento grave.
b) A pessoa resolve deitar por terra tudo o que o Outro representa, com a fofoca, o desdém, a maldicência, enfim de tudo um pouco que denigra a reputação ou o bom nome do Outro, e ao mesmo tempo a faça sentir menos mal…Uma das estratégias mais conhecidas é também a da velha fábula da raposa e das uvas: “Estão verdes…não as quero”
Isto acontece quando a pessoa se defende, e para não deprimir e não virar a raiva contra si mesma, por não conseguir o que o Outro é ou tem, resolve deitar por terra o Outro – vira a raiva e a agressividade contra o objecto da sua inveja, porque não consegue admirar e querer o bem do Outro, de forma alguma, e sabe que não o consegue igualar em “feitos”, sejam eles quais forem.
De igual forma as pessoas que sintam isto deveriam procurar ajuda. Não o fazendo, até por ser por vezes “cultural” este sentimento menos saudável, deveriam pelo menos contrariar este sentimento gerador de sofrimento e aceitar o Outro com as suas conquistas, e a si mesmo, nas suas conquistas e nos seus insucessos (estes podem até fazer-nos crescer mais e evoluir, do que os sucessos na verdade!)
c) A pessoa tenta copiar e imitar até ao limite tudo o que o Outro representa. Uma forma de admiração um pouco doentia, própria dos fãs de algumas “estrelas”, muito associada à adolescência, ou a uma personalidade ainda imatura, não importa a idade, que necessita de transformar esta “idolatria” em admiração pura e auto-conquista de Si. Esta forma de idolatria é grave sempre que ultrapassa o “campo da normalidade” e daquilo que é tido como não patológico. Todos sabemos de situações de violência grave contra o próprio ou contra o alvo da “idolatria”/ objecto de inveja, quando este sentimento saiu do limite do aceitável.

A meu ver, a ajuda psicológica pode ser benéfica também nestes casos, em situações que ultrapassem um dado período de tempo considerado natural, ou coloquem em causa de forma grave o Eu do sujeito psicológico e a sua noção de realidade.
Existem algumas subculturas no entanto onde a idolatria é bem enquadrada, não provocando sofrimento do próprio nem colocando em causa a segurança do “ídolo”. Alguns grupos de fãs são exemplo disto mesmo. De qualquer forma é necessário estar atento aos sinais que possam indicar alguma perigosidade para o próprio ou para o alvo de “idolatria”, para intervir atempadamente caso sejam detectados estes sinais.

Assim, de forma simplista, o sentimento de inveja, um sentimento inferior no sentido de ser primitivo e arcaico, mas inerente ao ser humano, ajuda o ser humano a evoluir e ser melhor, e com a evolução de cada uma e de cada um de nós, evolui toda a humanidade, em feitos brilhantes dos mais diversos tipos.
O sentimento que ajuda o bebé a querer “ser gente crescida” é a inveja, realmente. Uma inveja, sem julgamento de valor, que deve ser transmutada, transformada ao longo do desenvolvimento e da vida.
Durante a vida, aquelas e aqueles “bem resolvidos” consigo próprios, transformam inveja, mesmo inconscientemente, num sentimento elevado, como o da admiração.
A admiração que é de louvar é toda aquelas que é sentida em primeiro lugar porque aceitamos o nosso Eu e os nossos próprios “feitos” e conquistas, e em segundo lugar, porque aceitamos que existam outros que conseguem outros feitos e outras conquistas, dignas da nossa salutar admiração. Esta admiração positiva, ajuda-nos enquanto humanidade a crescer enquanto colectivo, a crescer enquanto pessoas, a evoluir com “gente de verdade”. Tomamos outros como exemplos de vida, e tornamos-nos nós mesmos exemplos de vida para o Outro.
Sempre que a inveja desapareceu e a franca admiração e orgulho tomou definitivamente o seu lugar, estamos a produzir sentimentos positivos. Sentimo-nos bem com a vida, tornamos nosso cada sucesso dos que admiramos, tornamos os nossos próprios sucessos e conquistas um pouco dos Outros.
Passamos a ser solidários, a sentirmos verdadeiramente que quando um da nossa espécie evolui e nos torna orgulhosos, todas e todos crescemos nesse momento – aquilo a que chamo uma espiral positiva de ser e de ter, em harmonia e fraternidade.
As conquistas, pequenas ou grandes pouco importam, tornam-se brilhantes pela luz do amor e de quem louva de igual forma a criança que conseguiu lavar os dentes sozinha, como a que não conseguiu mas tomou a outra como exemplo e esforçou-se de igual forma. Enaltece-se de igual forma a genialidade de quem inventou a cura para uma doença, como aquela mulher na rua que com amor nos fez um arranjo de flores para dar a alguém que admiramos!
Crescemos todas e todos, quando valorizamos o esforço de cada pessoa, em qualquer idade, quando valorizamos o bom que cada um tem para dar, e lutamos para que cada pessoa dê o seu melhor. Interessa menos o resultado e mais o empenho e o esforço.
Quando admiramos alguém, choramos com o seu sucesso, em fraternidade e amor humano, como sorrimos a cada passo das suas conquistas – uns que são próximos de nós, em laços de sangue ou de amizade, outro que estão distantes mas são modelos que admiramos tão somente.
Sempre que tornamos inveja em admiração e crescimento tornamos-nos todas e todos melhores, e as conquistas multiplicam-se,

Quando pelo contrário não o conseguimos, quando alguém inveja e não consegue fazer elevar esse sentimento a um outro mais positivo, destrói-se a si e ao Outro em alguns casos.
Quando isto acontece, significa que a pessoa que inveja tem dentro de si uma auto-estima menos positiva, significa que há uma qualquer tristeza na sua essência que não a permite amar outro ser humano ou ficar feliz pelas conquistas dos outros…
Toda a gente tem o direito de estar triste com a sua vida, por um qualquer motivo…isto não é no entanto inveja.
A inveja acontece quando existe um sentimento permanente de olhar o outro e querer “destrui-lo” de alguma forma, até por palavras, ou desdenhar, apenas porque percebeu que não o pode igualar, e é incapaz de aceitar isto, de sublimar, de transmutar o mal em algo de bom.

Quando se consegue transformar a inveja em admiração, aceitar o nosso Eu com as suas limitações,
e o que de melhor temos para dar, e aceitar os outros também com as suas limitações e potencialidades, caminhamos verdadeiramente no sentido do aperfeiçoamento do Eu, do Outro e do Mundo. E vamos verificar que passamos a sorrir e estar felizes mais vezes, por nós e pelos outros, e por todos…Vamos perceber o sentimento positivo que nos invade; envolver o outro nas nossas conquistas e sermos envolvidos nos seus sucessos é verdadeiramente um bálsamo revigorante que nos fortalece a todas e a todos.
Em relação a quem nos inveja, devolva amor. Sintonizarmos os nossos sentimentos num nível superior potencia o nosso bem e o do Outro.
E se o Outro é realmente “invejoso” e destrutivo…Bem só podemos acreditar que todo o mal é um bem em gestação, e que com o tempo as pessoas evoluem e podem ser sempre melhores.
E se acontecer consigo mesmo ser invejoso em dado momento da sua vida?…Primeiro: não se julgue. O sentimento é mau e negativo, você não. Depois: Tomar consciência é em si mesmo um passo fundamental para a sua evolução.
O mais importante é querer honestamente vencer os sentimentos menos positivos, que só provocam a destruição do próprio e eventualmente a dos outros. Se vir que não consegue sozinho, procure ajuda, mas nunca, nunca se julgue e recrimine – isto apenas o fará sofrer. Com tempo e muito amor próprio, chegará certamente o momento em irá conquistar-se a si mesmo e sentir-se bem a um tal ponto consigo próprio que irá conseguir com honestidade, alegrar-se com os sucessos dos outros. Assuma os seus sentimentos menos bons e não fuja deles, pois só assim os poderá transformar, pelo seu reconhecimento. E nunca confunda um sentimento mau, com uma pessoa má. A pessoa é boa, o sentimento é que pode “não prestar”, mas, ainda assim, ele é valioso para conquistar sentimentos mais positivos e até fenomenais, que na verdade precisam da matriz, e esta pode ser menos boa. É o caso da transformação da inveja em admiração pelo Outro e progresso próprio! É também o caso de “conversar frente a frente com a tristeza, percebendo-a, tolerando-a, e finalmente poder transformá-la. Fugir ou negar fazem parte do caminho, mas só servem quando ultrapassados. A mudança começa sempre no reconhecimento do que queremos mudar. E se queremos, podemos, acredito eu.
Uma conquista nunca é só de uma pessoa, é do mundo à nossa volta, de todas e de todos que nos envolvem e a quem envolvemos. Partilhar conquistas é uma benção, do meu ponto de vista. Saímos todas e todos a ganhar.
Somos na verdade uma só Humanidade, e se fossemos mais solidários talvez a admiração mútua prevalecesse sobre as invejas e destruições…talvez deixassem de haver tantos “Eus” orgulhosamente sozinhos e passassem a haver mais “Nós” solidários…Talvez fossemos todas e todos mais gentis entre nós, e aí sim, a conquista caminhasse a passos largos, conquistas de cada uma e de cada um, que são de todas e de todos nós.
É por isso que gosto de escrever, é que cada pensamento e palavra que ponho no papel passa realmente a ser de quem a lê, já não importa de quem partiu, importa bem mais onde chega, e o que cada uma e cada um de nós faz com isso.
Bem hajam por lerem o que aqui vou escrevendo. Tenham uma boa semana!