A invisibilidade e os Panama Papers

O termo invisibilidade é utilizado comummente como designação de uma qualidade que impossibilita provisoriamente o conhecimento da localização de quem é invisível. Isto é, sabemos que haverá um quem invisível, só não sabemos onde está – por exemplo, do protagonista da célebre narrativa de Orson Wells sabemos que se trata de um homem o qual, contudo, habita no mistério. Usualmente, o uso do termo alude também ao poder que decorre dessa invisibilidade – como ocorre com o manto da invisibilidade de Harry Potter.

O filósofo espanhol Daniel Innerarity, na sua obra “A Sociedade Invisível”, proclama a problematicidade da contemporaneidade: herdeiros de um Iluminismo que finalmente nos revelaria o mundo da verdade e do progresso, temos hoje, ao invés, “a impressão de tudo estar à vista mas de que, ao mesmo tempo, são cada vez mais invisíveis, menos identificáveis, os poderes que de facto nos determinam”. Virtualização de vivências, pluralidade de formas nos agentes políticos, heterogeneidade de formas de vida, imprevisibilidade dos rumos coletivos, diversificação das hegemonias, abundância de factos informativos não integrados em leituras significacionais unificadoras, são algumas das características desta nova “sociedade invisível”.

Esta era de invisibilidade, perspetivada com atenção, revela que, como sugerido no início deste texto, nós sabemos o que há, só não sabemos onde está. Ou seja, assumindo este ignorado onde de modo lato, podemos dizer que conhecemos os elementos que potencialmente existem, só não os sabemos localizar em termos temporais, espaciais e identitários. Sabemos que os nossos dados online são usados para publicidade segmentada, sabemos que há vírus informáticos que circulam pelas profundidades digitais, sabemos que alguns dos nossos dirigentes políticos serão corruptos e movimentam montantes com notável subtileza, mas não sabemos, genericamente, quem protagoniza estas invisibilidades, quando e em que lugar.

A revelação de que os EUA escutavam dirigentes europeus, a acusação de Sócrates e de Lula, a disseminação dos Panama Papers, são notícias que parecem desconectadas mas que têm um denominador comum: a de revelar o que se movimentava invisivelmente, fazendo-nos localizar algo que já calculávamos que existia mas cujas coordenadas eram por nós desconhecidas. Este retirar da invisibilidade faz-nos passar da esfera do calcular para a esfera do saber. Calculávamos que as potências mundiais estariam a espiar-se de modo altamente tecnológico, calculávamos que algo de estranho se passaria com ex-chefes de governo revelando riqueza desmesurada, calculávamos que certamente as offshores pelo mundo espalhadas para algo serviriam. O que estas notícias fizeram foi elucidar-nos quanto à especificidade espaciotemporal e identitária de fenómenos que já calculávamos e que, agora, sabemos. Por isso a reação nas redes sociais, por exemplo quanto aos Panama Papers, é um misto de surpresa – porque não sabíamos –  e de confirmação – porque já calculávamos –.

A invisibilidade, como aqui foi apresentada, é um poder provisório e também isso está patente nas recentes notícias. É um poder porque, em determinadas esferas, não está ao alcance de todos, exigindo um poder prévio de acesso e reproduzindo-o – o detentor de rendimentos do fator trabalho não consegue alcançar a invisibilidade como a alcançam os detentores de grandes rendimentos do fator capital, na medida em que se eu, por exemplo, não pagar os meus impostos, serei penhorado, ao contrário de um banqueiro. E é provisório porque a  investigação jornalística, aliado ao poder de disseminação da internet, permite que, hoje, possamos descrever a função do jornalismo como a de ser uma força de contra-invisibilidade. As fugas de informação acerca das escondidas traseiras do poder, que ciclicamente habitam o espaço mediático, sublinham esse cariz provisório da invisibilidade. Portanto, se, por um lado, uma certa invisibilidade se constitui como característica inexorável dos nossos tempos, podemos, por outro, resgatar certos campos de ação de volta para um lugar visível, sendo a imprensa livre fulcral para esse movimento elucidatório.

Especificamente em relação aos Panama Papers, não é um facto novo que uma parte relevante das elites políticas use o seu poder para enriquecer. Isso não é um problema do capitalismo – isso é um problema do ser humano. O que ocorre é que os fenómenos sociais de invisibilidade, que aqui já foram elencados, aliados a uma série políticas deliberadas de desregulação da atividade económica, ampliaram a dimensão de tal tendência face às legítimas expetativas éticas dos cidadãos, havendo aqui, também, um desencontro entre a negativa realidade e a esperança coletiva: um monarca absoluto tinha uma riqueza visível e ninguém esperava que assim não fosse, enquanto que um dirigente político corrupto tem uma riqueza invisível e as expetativas da cidadania são no sentido oposto. Neste quadro, o que é urgente e necessário é aumentar o grau de escrutínio dos políticos eleitos e a regulação da vida financeira internacional. O que não é necessário é, a propósito dos Panama Papers, pôr em causa a democracia representativa e a economia produtiva de livre concorrência. Pois o sistema que perversamente permite que líderes políticos enriqueçam sem ética nem pudor é o mesmo que permite que jornalistas e órgãos de comunicação livres – que, não esqueçamos, são também empresas – esclareçam a opinião pública numa ação que torna visível o antes invisível. Há que salvar a democracia representativa e a economia produtiva de mercado das garras da invisibilidade financeira,  e não aproveitar os surtos de invisibilidade para pôr em causa a própria democracia. Isto é o mesmo que dizer: estou certo de que se Venezuela ou Cuba fossem o mundo inteiro, haveria tanta corrupção como há agora mas menos jornalistas livres para a reportar.