Já não há nada – Clara Pinto Correia

Quando o 794 pára diante do Mercado de Xabregas, entra sempre lá para dentro uma fauna profundamente desconstruída que não se confunde com nenhuma outra. Roupas largas e velhas, alguns saltos altos que não foram feitos para estas vidas, combinações curiosas de lingerie rendilhada debaixo de blusões coçados e apertadas nas ancas por jeans com pregos e buracos, eles de bonés de baseball e calças de fato de treino saídas de sacos que têm sempre consigo, muitos e olhos baços, dois ou rês a rir um riso que morre depressa – e sempre aquele cheiro, aquele cheiro, aquele cheiro que não se confunde com mais nada.

Aquelas pessoas, desagradáveis mas louváveis, são as que foram para ali procurar a metadona e aceitar a inscrição num programa de limpeza. Enquanto não for detectada nenhuma recaída, podem ir lá uma vez por dia para mais do que um comprimido: é o banho quente, é o jantar digno, e é o apoio psicológico para os que o pretendem. Para terem a certeza de que estão ali sempre às horas certas, e em partes iguais por falta de sítio que os abrigue, uma parte substancial deles acampa ali mesmo diante das graças, instala-se, organiza-se, entreajuda-se – e a fila das horas de ponta, às vezes, dá a volta ao quarteirão.

São uns quarteirões enormes. De onde se compreendo que a dimensão dos estragos é sempre maior do que a gente gostaria de a ver.

Ontem sentou-se ou meu lado um mulher com formas generosas e roupa preta justinha, se bem que tão não adormecida que por vezes se lhe esvaíava o rolar do discurso. Mas ela não desistiu de falar. Estava em causa o futuro dos seus filhos. E, por eles, muitas mães estavam prestes a aderir à ter hippies por filhos, enquanto os pais tinham que correr ao pape desagradável de ostentar os brasões da família com repercussões que marcaram todo o processo de limpeza de consciência – eram os desgraçados que tinham pessoa “de esquerda” na família, e não faltavam abrigos fossem juntos á bola. À bola da mais rasca, ainda por cima.

Aquela mulher sentada á minha frente desligou o telemóvel e agarrou na mão do libro com os olhos brilhantes.

Consegui agora falar com o doutor, disse ela. Ele estava longe, por isso é que não conseguiu atender. Mas, amanhã, ao fim da tarde, o pai vai levar-te lá.

Não quero ir, respondeu o rapaz.

Filho, insistiu a mãe com aquela flexibilidade que só as mães  têm. Tu tens que ir. Já te baldaste vezes de mais ao trabalho comunitário. Eu virei o mudo de um lado para o outro para te arranjar emprego, mas tu não aguentas mais que uma semana. Mas não dá para continuares a viver assim, filho. Não dá. Entendes.

Ele tinha os olhos cheios de lágrimas. Agarrou na mochila e deu um salto para o cais.

Eu desenrasco-me, mãe. Não tenhas medo, os outros nem sequer têm família. Eu tenho-te ati, tenho o pai, tenho a mana, e vocês vão dar-me muito apoio. Antes isso que aquelas quintas onde é preciso varrer o chão e carregar as pedras das obras. A sério, mãe. Eles não percebem nada do que ando a fazer, mas eu e a mana percebemos. Só se não quiseres. A mãe tinha os olhos cheios de lágrimas.

Vá lá, mãe, não chores. Olha, eu saio na próxima e não de chateio mais, Se não queres saber mais de mim, nunca mais fales a ninguém. Nunca mais, mãe, percebes,

Saltou para o cais em Entre Campos. A mãe enfiou os óculos escuros e deixou-se ficar a chorar suavemente.

Crónica de Clara Pinto Correia
Transportes Públicos