Já não jogo no ringue do Rio Tinto. Já não chuto de bico com o pé esquerdo.

Passa tudo muito rápido. O tempo é o que é. Não se vê. Vai por ali fora e chega sempre primeiro. Corta caminho. É um trafulha.

A vida é uma curta-metragem. Aproveitam-se meia dúzia de cenas. Ou menos. Às vezes mais. Às vezes.

A minha é como as outras. Um palco. Onde faço de Romeu. De Otelo. De Hamlet. De bom. De mau. De tudo. À espera de me fazer feliz. À espera de fazer os outros felizes.

Em mim há cento e tal mil pessoas a gritar Campeões. Tudo aos saltos. Bocas abertas. Cachecóis berrantes. Há mil vidas à espera. De saírem cá para fora. Há mil vidas. Só tenho uma.

Olho para trás. E assisto do melhor lugar da minha bancada ao ping pong que já vivi. Cabeça para a direita. A seguir para a esquerda. Muitas vezes seguidas. Houve amor. Houve risos. Houve saudade. Houve derrota. Houve dor. Da que não dói por fora. Da que não passa com mercúrio. Da que passa com o tempo. Só. E o tempo não se deixa enganar.

Em pequenino, joguei em ringues. Com outros pequeninos. Escolhíamos as equipas.  Fazíamos coxinhas. Chutávamos de bico. Fazíamos cargas de ombro. Nunca era falta.  Quando a bola saía era sempre nossa. Nunca dos outros. Em pequenino o tempo nunca mais acabava. Não era trafulha. Era justo. Era Verão, sempre. Até no Inverno. Em pequenino não havia quarenta ladrões a fugir com o meu tempo num saco grande.

Mil vidas. São as que tenho em mim.

Viajo sem sair do sítio. Finjo que sou todos os que tenho cá dentro. De olhos fechados em punho, vejo-me onde me apetece. E aí sou Nobel. Nobel, caramba! Aperto os botões do casaco, dou um jeito à gravata e agradeço. Aos meus pais. À minha irmã. À Elsa. E choro. E eles também.
Depois fecho os olhos com mais força. E aí não choro. Rio. Muito. Às cavaluchas, um filho. Pequenino. Que me chama Pai. E apaga os fantasmas que fazem excursões nos meus olhos. E planta, lá, peixes amarelos. E azuis. E verdes.
A seguir sou viajante. Perdido de amores.Fecho os olhos com força. E apaixono-me em  frente à Sagrada Família.

Depois, com os olhos ainda mais fechados, vejo- a a subir o Park Güell  como quem faz o caminho de Santiago. Falta-lhe o cajado, sobra-lhe vida.

Ouço-a dizer que temos de ir a Tibidabo, sem a escutar. Escorrem-lhe pingas de suor. Não tem maquiagem na cara. Muito menos no coração.
Abro os olhos. Estamos com os pés mergulhados no Mediterrâneo. Diz que os meus são feios. Pergunto-lhe se já olhou bem para os dela.

Digo que a amo, em catalão, na Avenida Diagonal. Foge, a rir, com chinelos de meter o dedo, Diagonal abaixo. Só diz que gosta de mim quando tropeça e a apanho numa viela do Bairro Gótico.

Peço a um senhor, em espanhol, para nos tirar uma fotografia. Ele diz “Si us plau, parla´m en català”

Peço desculpa. Ele tira-nos na mesma. Ela fica linda. Eu fico com barbela.

E volto da viagem. E abro os olhos. E volto ao sítio onde não sou tudo o que me apetece ser.

Já não jogo no ringue do Rio Tinto. Já não chuto de bico com o pé esquerdo. Cresceu-me barba. Depois riscos na testa. E nos olhos. Hoje tenho cara de pai. Hoje tenho olhos de pai. Ontem não. O tempo é um Alfa Pendular. É sempre a andar. Apita aqui e ali. Mas só para acordar quem está a dormir.

Há mil sonhos. Há beijos. Há caminho para subir. Há braços para voltar. Há países para fundar.

Só se ganha ao tempo quando se tem respeito por ele. Quando hoje é sempre um dia mais bonito do que o dia que há-de vir.

Em mim há cento e tal mil pessoas a gritar Campeões. Tudo aos saltos. Bocas abertas. Cachecóis berrantes. Há mil vidas à espera.

De saírem cá para fora.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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