Telma, António e Kilas, o mau da fita

Decididos a ver no que dava, Telma e António começaram finalmente a namorar, mas passados quinze dias já tinham a primeira discussão e, ainda por cima, tão violenta, que estremeceu os pilares da relação como se nalgum momento tivessem ousado revelar, um ao outro, os segredos macabros de ambos.

Uma discussão que começou vá-se lá saber por quê, mas felizmente terminou sabe-se muito bem como: com promessas de amor num daqueles abraços que duram o tempo que se demora a fazer amor nas calmas.

Para assinalar a reconciliação, combinaram uma ida ao cinema. Valerá a pena recordar quando foram juntos a primeira vez. Para libertar da pressão das aulas, combinaram ir juntos ao Éden, ver um filme em voga recém-estreado intitulado “Kilas, o mau da fita” ou, como António gostava de realçar, “a história fictícia dum totó com nome de larilas que papava a protagonista da película à custa de lhe ter mentido dizendo, que compusera a fantástica trilha sonora do filme”. Na verdade, esta era da autoria de Sérgio Godinho e a protagonista de quem se falava, contracenando com Mário Viegas no papel de Kilas, um malfadado delinquente na ânsia de dar o golpe perfeito, era nada mais nada menos do que Pepsi-Rita, aliás, Lia Gama, uma mulher bonita, para lá dos padrões da época e multitalentosa ao ponto de ser capaz de ter escrito um enredo, no qual a condição sine qua non para ter um amante, passaria pela escolha dum homem tão jeitoso que, independentemente do sucesso de bilheteria alcançado, dispor-se-ia a gravarem juntos um segundo episódio da sequela, que não terminaria enquanto dali a uns anos a relação não estagnasse, estando definitivamente condenada ao fracasso.

Na pele duma cantora em plena fase descendente da carreira, Lia Gama era dona dum ar sensual, e em palco parecia guardião dum segredo ligado ao amor, quando cantava e não era de si que as estrofes revelavam que vivia apaixonada. No lugar, António delirava à vista do peito de calibre nove milímetros da atriz, tremendo de alto a baixo, como se à distância dum palmo lhe apontassem à cabeça uma arma desse volume, pronta a disparar.

Mais difícil para Telma, era eleger um homem em quem retivesse o olhar e com quem faria gosto ir lá fora no intervalo, tomar um refresco ou saborear algo que durasse nem que fosse até à hora de ir para casa. Achava-os desajeitados, parecendo todos fruto do embaraço duma noite mal dormida, e malvestidos como se vivessem no contexto duma crise de valores a começar pelo da noção de bom gosto. Usavam camisas de aba larga, calças à boca-de-sino e deixavam crescer o bigode, que não aparavam, como se desse prova de masculinidade, exibir, à laia duma mulher que não gostasse de se depilar, um bigodaço farfalhudo que mais parecia uma pentelheira.

Escolheram para se sentar, dois lugares na última fila, lá atrás donde podiam observar sem ser vistos, atendendo ao risco de que, durante as cenas monótonas, no máximo olha para o lado, algum espetador distraído à procura de ação. A sessão das quinze era a mais concorrida, mas em resultado duma educação rígida, era a única em que a mãe de Telma deixava sair a filha, expondo, graças à minissaia inexistente, as pernas longilíneas e encurvadas como uma estrada que serpenteia duas montanhas antes de terminar num vale.

Por meio de palavras, custa definir a sensação de vê-la passar, caminhando bamboleante como se lançasse nos rapazes a dúvida sobre qual melhor se adequaria para ser seu par. Um que, mais agradavelmente do que Kilas, a surpreendesse demonstrando respeito pelas mulheres e coragem para, em defesa da sua honra, estar disposto a bater-se por ela em duelo.

No final, António abandonou a sessão cantarolando um dos temas do filme. Tinha uma voz de falso contralto e por isso, no aspeto da afinação, sempre dava a impressão de que tudo o que se entretinha a cantar soaria melhor na interpretação se um soprano. Parou quando pela expressão de desagrado de Telma, temeu que a cantoria recordasse um filme que tivesse desagradado, mas ao mesmo tempo sentiu-se feliz, e mais alegre ficou quando avistou num cartaz o anúncio da estreia prevista dum filme americano, em cujo elenco, a presença de Lia Gama, faria supor o regresso de Pepsi-Rita para cantar em Inglês as canções de Sérgio Godinho.

FIM