Lar, amargo lar

Faço 75 anos às vinte e três horas e cinquenta e nove minutos deste dia, mas, contrariando a minha alegria de quando me vejo rodeado de gente, confesso que estou aborrecido porque desde cedo não param de vir ver-me pessoas à pressa que, após uma breve observação da minha doença, me mandam abrir a boca e entopem com mais daqueles comprimidos que comecei a enjoar desde que a enfermeira alta de tranças azuis passou a dar-mos para tomar de hora a hora.

Pensei que coisas destas só sucedessem aos outros, mas vim provisoriamente para um Lar, isto é, uma casa onde repousam pessoas da terceira-idade como eu, que me tem servido de morada nos últimos meses, ou seja, aqueles que se seguiram à morte da minha terna esposa de quem vivo cheio de eterna saudade.

Dantes, eu e ela vivíamos felizes num lar, que tão pouco era parecido com aquele, mas que era o ideal para a necessidade dela se poder deslocar sem precisar da minha ajuda, na cadeirinha de rodas comprada numa loja de artigos de primeira-necessidade em segunda-mão.

Habitávamos no terceiro andar de um prédio que tinha à entrada uma rampa que dava acesso à escada de cujo patamar se chegava facilmente ao elevador em que nos deslocávamos para cima e para baixo, mas foi após ter sofrido um gravíssimo acidente de automóvel, ao qual quase sucumbiu, que a minha mulher passou a precisar de se locomover por esse meio.

Até essa altura, nunca conhecera restrições e movia-se com grande desenvoltura, não se tratava de uma pessoa com necessidades especiais e, por isso, nunca precisáramos de desviar, à sua passagem, como a partir daquela altura, os móveis que encontrávamos no caminho e tornávamos a pôr no mesmo lugar mas sempre com a sensação de que naquela casa, depois do acidente, nada voltaria a ser como dantes.

Já me tinha conformado de viver na companhia de outros idosos, num edifício apalaçado erguido na segunda metade do século dezoito para ser residência de um burguês tornado Conde em resultado da riqueza que provinha da exploração de uma plantação de café no Brasil, assim como dos escravos que lá trabalhavam, preferencialmente de sol a sol para não poderem dedicar tempo a experimentar fazer outra coisa de que pudessem vir a gostar mais e com isso lhe pudessem desagradar.

A casa tinha janelas altas com portadas de madeira de pinho a imitar as antigas. Estas haviam sido retiradas e substituídas pelas novas há menos de dois meses, aquando de umas obras de remodelação que, sem terem alterado a fisionomia do edifício, fizeram do que havia no interior o lugar mais parecido com uma clínica de luxo que eu conhecia, onde hoje em dia só teria dinheiro para pagar uma diária, num quarto como o meu, a primeira condessa se ainda fosse casada com o rico fazendeiro ou uma descendente do casal que ainda estivesse viva.

Era um edifício muito bonito e por fora havia ligação a uma capela forrada de talha dourada que, numa imagem sua pregado na Cruz, Cristo ao centro do altar parecia contemplar.

Lá dentro, acabando no piso superior havia uma escada de mármore a par de um corrimão e ao lado uma planta que crescia forte como se buscasse alimentos fora do vaso.

Era vigorosa e em cada pernada sua parecia poder suster o peso de todas as desgraças que ao longo das gerações se abateram sobre a família. Talvez ali estivesse desde os primeiros móveis que decoraram a casa e conhecesse toda a sua história. Talvez, há muitas décadas, tivesse presenciado a expressão de horror na cara do nobre dono ao tomar conhecimento, pelo alvoroço que vinha da rua, da notícia da morte do príncipe herdeiro, às mãos de um anarquista, que sentenciava o fim da própria monarquia.

Mas talvez na cara da esposa dele, que ainda era nova, não tivesse notado a alegria de ter compreendido por que razão viera ao mundo, ao dar à luz pela quarta vez antes de completar os trinta anos.

Pela minha perceção do espaço, suspeitava de que os quartos dos acamados eram os do piso de cima. Partilhava o meu com um sujeito reformado da marinha mercante que durante a juventude em toda a parte onde ouvia falar de Portugal se emocionava, mal sabendo que, neste país que não é para velhos, um futuro pouco risonho lhe estava reservado, mas ainda assim melhor do que o era para a esmagadora maioria das pessoas que atingiam a sua idade com menos meios de subsistência.

Como nunca recebíamos visitas, eu por desconhecer o paradeiro de familiares e ele por lhe desconhecerem o paradeiro em cada porto onde deixara uma mulher com um filho ou dois nos braços à espera, passávamos muito do nosso tempo a conversar.

Por entre algumas desilusões e frustrações pelos desejos que ficaram por concretizar, eu confessava-lhe a tristeza que sentia por não ter histórias tão fantásticas como as suas para contar, todas elas passadas no mar e que em comum com as minhas, desse tempo em que me gabava de namoriscar com todas as raparigas do bairro, só tinham em comum o facto de não haver testemunhas vivas que pudessem afirmar a sua veracidade.

Falávamos durante horas de temas abrangentes da sociedade, que iam da política ao futebol, e, umas vezes sim outras não, divergíamos de opinião, contrariando o ponto de vista de quem achava que a falar todas as pessoas se entendiam. E as nossas desavenças eram por causa da Política e de eu andar a tentar convencê-lo a alterar o sentido de voto nas eleições para a Assembleia da República que não tardavam a ter lugar, como se o facto de, entre duas pessoas como nós que usavam a cabeça para pensar, a posição mais à esquerda ou à direita de uma delas em relação à outra, pudesse pesar mais na vontade de continuarem amigas do que a coincidência de gostarem ambas do mesmo clube, ao ponto de pensarem que de todas as coisas que existiam à face da Terra, fossem elas grandes ou pequenas, tanto nas vitórias como nas derrotas, as ligadas ao futebol eram as únicas que verdadeiramente importavam.

Se me fosse dado a escolher, optaria por receber como presente de aniversário um relógio de bolso atado a uma corrente de ouro, que desse as horas com atraso para eu não perceber que tanto tempo tinha passado desde a época em que deveriam ter-mo dado, no máximo até um mês depois de ter feito com aproveitamento o exame da 4ª Classe. Preferi-lo-ia em detrimento de um telemóvel de última geração, como o que tinha a enfermeira que cuidava de mim, que me poria em contacto com qualquer pessoa em qualquer parte do mundo, mas com o qual não aprenderia a trabalhar em menos tempo do que demoraria a aparecer outro de tecnologia mais avançada, em face do qual esse seria considerado obsoleto.

Apeteceu-me que, tão depressa como esqueceria as recomendações que me desse, surgisse a enfermeira do carrinho dos medicamentos, para me dar um comprimido que estabilizasse os meus níveis de açúcar no sangue. Por vezes, na falta deles sentia-me zonzo, sobretudo depois de tantas horas sem comer. Podiam trazer-me já o bolo de anos e um conjunto de velas para soprar enquanto me restava fôlego e pudesse armar um escândalo se visse que se enganavam na conta e trouxessem, uma que fosse, a mais.

Sinto-me cansado. Logo mais vou dormir com a sensação de ter saltado este dia no calendário e, por essa razão, ter perdido a maior efeméride do ano. Vou sonhar com um dia perfeito passado no campo, sem horas de chegar a casa como no tempo em que, ainda solteiro, já não vivia com os meus pais porque desde cedo almejara ser independente de tudo e de todos.

E amanhã talvez acorde sonolento e peça para me beliscar quem possa duvidar de que eu seja feito da mesma matéria de que são feitos os sonhos.

Aos outros, como o meu parceiro de quarto, eu não preciso de convencer de nada, a esses, caso um dia venham a desconfiar de que eu não sou afinal fruto da sua imaginação, não vou dizer nada, por certamente não irem tão facilmente acreditar no que eu possa dizer-lhes para justificar o contrário.