Liga dos Campeões na RTP: quando o Governo faz de oposição a si mesmo

Bem sei que já falei do assunto, mas os desenvolvimentos do mesmo são caricatos demais para não voltar a ele. Porque, quando o Governo faz de oposição ao próprio Governo, quem precisa de partidos da oposição?

Segundo a Lei que criou o novo modelo de organização da RTP, citada pelo Observador, cabe ao CGI (Conselho Geral Independente) «supervisionar e fiscalizar a ação do Conselho de Administração” (alínea f); “proceder anualmente à avaliação do cumprimento do projeto estratégico para a sociedade e à sua conformidade com o contrato de concessão (alínea g); e “emitir parecer sobre a criação de novos serviços de programas da sociedade ou alterações significativas aos serviços de programas já existentes (alínea h)».  Este orgão, decidiu chumbar o plano estratégico elaborado pela Administração da RTP por considerar falta de lealdade institucional ao não ter comunicado antecipadamente a decisão de concorrer aos direitos de transmissão de jogos de futebol da Liga dos Campeões da UEFA.

Ainda antes deste chumbo, o Ministro da Presidência Luís Marques Guedes, quando questionado sobre o assunto, disse que o Governo era contra a medida da RTP, frisando expressamente que o dinheiro dos contribuintes não devia ser gasto em transmissões de jogos de futebol. Curiosamente, o documento aprovado pelo mesmo Governo que determina as linhas orientadoras do serviço público de televisão, indica que um dos conteúdos que o mesmo deveria transmitir seria um jogo da liga dos clubes campeões europeus por semana (salvo erro, especialmente das equipas portuguesas que estejam em competição).

É sabido que não cabe, nos meios de comunicação social, aos conselhos de administração a escolha dos conteúdos. Assim, ao Conselho de Administração da RTP cumpre apenas verificar o cabimento orçamental dos conteúdos decididos pelos órgãos próprios da estação pública, uma vez que o dito conteúdo estava nas linhas orientadoras que o Estado tinha definidas para o serviço público de televisão.
A ERC, Entidade Reguladora para a Comunicação Social, esclareceu em comunicado “que o Conselho de Administração da RTP não tinha o dever de comunicar ao Conselho Geral Independente a aquisição dos direitos de transmissão da Liga dos Campeões”. O regulador acrescenta ainda que “considera que não cabe ao CGI definir os conteúdos a incluir nas grelhas de programas do operador público, desde que enquadrados na lei e no contrato de concessão, sob pena de grave violação da independência e autonomia editorial.” E que a “ERC conclui ainda que as competências do CGI em matéria de definição de conteúdos esgotam-se na emissão de pareceres não vinculativos sobre a criação de novos canais ou sobre a introdução de alterações significativas aos já existentes.”  Em suma, perante o regulador, quem está a intervir ilegalmente é o CGI, influenciado claramente pelo redondo “não” de Marques Guedes.

Por tudo o que aqui descrevi (e pelo que já havia escrito noutra crónica onde também abordei este assunto), o Governo mostrou-se contra algo que o mesmo aprovou. O que demonstra a incapacidade do Governo em lidar com esta matéria. Foi o Governo que criou este modelo de organização da estação pública e que determinou quais seriam as linhas mestras que a mesma devia seguir. O que Marques Guedes fez (e mais tarde também Passos Coelho) foi, por isso, anunciar que o estava contra algo que é responsabilidade do Governo. E, ao mesmo tempo, dizer que estavam surpreendidos com a atitude do Conselho de Administração da RTP, que, segundo o próprio Conselho e a ERC, se limitou a cumprir as competências que a Lei e a estatutos da empresa (não quero repetir quem os aprovou, porque o caríssimo leitor já deve ter percebido) lhe atribui.

Poiares Maduro disse que este novo modelo de organização serviria para garantir a independência da RTP face a qualquer Governo. Este episódio dos direitos de transmissão de jogos da Liga dos Campeões mostrou que o Governo continua a, usando o jargão popular, “meter a foice em seara alheia”.

 

Crónica de João Cerveira