Escrevo sempre ao domingo. Que é quando custa mais. Mas é quando as palavras aparecem. Fico a olhar para os meus dedos. Parece que estão a tocar piano. Escrevem sozinhos. Só ao domingo.
O domingo é gabardine. Bege, ainda por cima. Não aprecio. Lamento!
Sou um indivíduo do sábado. E da sexta. Os dias dos sonhadores de trazer por casa. Como eu.
Sou cinéfilo. Mas do que se passa na minha cabeça. Graças a Deus, ou não, tenho canais que nunca mais acabam. Faço-me zapping, constantemente. Ora sou desporto. Ora sociedade. Ora um canal para adultos.
Vivo de recordações. E de projecções. Aliás, sou o melhor cidadão do mundo a fazer projectos. Sou tão bom que, às vezes, faço abstenção à vida. E isso aborrece.
Vou a Londres no Natal. Escrevo Londres, mas leio outra coisa qualquer. Uma coisa simples. Mas muito grande. Londres é o meu algodão doce de adulto. Arrepia. Os pêlos ficam erectos. É cinzenta, é fria, chove sempre muito. Chove, não. Cai saraiva. A torto e a direito. Londres cheira a mundo. Cheira a tudo. A coisas boas. E a más. Também cheira a suor e a catinga. É a vida! Aliás, é como a vida. Não engana!
Em Londres, numa curva, não morri por um centímetro, enfiado num táxi. Em Londres, fui roubado. Quarenta e sete libras e um boné. E um cachaço! Em Londres, já grandito, numa loja, não fui a tempo de controlar os esfíncteres e tive azar. Eu, primeiro. A senhora da limpeza, depois. Portanto, só razões para gostar do sítio. Mas há mais.
Foi lá que fui procurar pela vida. A que tinha perdido. Aqui. E se Deus está nas entrelinhas, dessa vez, vi-O. Vi amor. Não por uma mulher. Não por um pai. Não por uma coisa. Por uma pessoa. Que estava a pedir. Não sei se dinheiro. Não sei se amparo. Não sei se uma mãe. Não sei. Sei que lhe dei moedas. Sei que ele me perguntou se era muçulmano. Disse-lhe que não, que era português. Levantou-se. Abraçou-me. Gritou! Era português, também. Não sei o nome dele. Julgo que nunca soube. Não importa. O que importa são os olhos. Os dele, primeiro. Os meus, a seguir. Aquele abraço teve tudo lá dentro. Dele, as saudades. Talvez da língua. Talvez da terra. Da Pátria, que nunca chega a sair de nós. Talvez da vida que teve. Da minha, isso e o resto. Mais a vontade de começar de novo. Estivemos colados segundos. Chegou a pousar a cabeça no meu ombro. Cheirava muito mal. Mas foi ele, mendigo, coberto com uma manta imunda e de barbas sujas, que me tirou do meu pardieiro. Espero tê-lo ajudado, também. Não com as libras. Com o que pus naquele abraço. Um dos melhores que tive na vida.
A seguir, inspirei o ar gelado e deitei-o todo cá para fora aos pouquinhos. Estava outro!
Foi lá, longe, que corri como um desalmado quando vi um senhor, negro como breu, com a camisola do meu clube. Entrei num autocarro que não era o meu para lhe falar. Nigeriano, de inglês que saía aos soluços, falou-me do Porto como se tivesse nascido na Corujeira. Lembrava-se do Madjer. Do calcanhar do Madjer, caramba! – O Deus. O super-homem argelino a quem os alemães, grandes, muito grandes, atiraram kryptonite, em Viena. Mas ele esquivou-se. Era o super-homem! – Quando saiu, já na parte de fora, fez o gesto do calcanhar, riu-se para mim e ficou a dizer adeus. Mão preta, palma da mão muito branca, cheia de riscos e sarrabiscos. Um pêndulo a andar de um lado para o outro devagarinho. Dentes Imperfeitos. Olhos felizes e infelizes ao mesmo tempo. Os olhos. Sempre os olhos. Fiquei a olhar para trás, a dizer-lhe adeus. Ali, na parte mais órfã da cidade. Fez-me bem. Fiz-lhe bem. A vida é isto, uma troca. Um momento. E isso é tanto!
Em Londres, vi mulheres com burkas, desconfiadas do mundo. Ao lado, mulheres de peito feito, quase como vieram ao mundo. Vi freiras a mexer os lábios e a segurar o terço. Vi ateus. Vi prostitutas a convidarem-me a subir e senhoras muito loiras a fazer o pino num varão. Vi igrejas a convidarem-me a entrar. Entrei. Não vi Deus, mas ouvi silêncio. Vi livros a pedirem para ser lidos. Vi brancos, pretos, feios, bonitos. Tudo. Conheci o Mustapha. Do Egipto. Indivíduo distinto, empregado de hotel. Camisa amarela, gravata vermelha, casaco aos quadrados. Disse-me que a vida só fazia sentido quando era vivida a dois. Disse-lhe que sim.
Vi gente muito diferente. Toda igual. Todos à procura do mesmo. É sempre assim. Somos todos mais iguais do que diferentes.
Em Londres, desapaixonei-me. Para me poder apaixonar outra vez. Morri para poder nascer. Custa. Muito. É preciso querer, primeiro. A seguir, coragem e fé em Deus. Para quem o tiver. Não vai lá com chá de cidreira. Nem com os amigos, vê lá. Estás entregue a ti. Desenrasca-te. Só lá vai com gritos cá dentro. Onde só tu ouves. Só com noites por dormir. Com olheiras. Cinzeiros cheios, talvez. Custa, pois. Muito. A ressaca é uma corda. És tu a puxar para o sítio onde já estiveste e tu a puxares para o sítio para onde queres ir. Se ganhares, nasces outra vez.
Foi em Londres que ganhei. À noite, de braços empoleirados na ponte de Westminster, ao frio, sozinho, morri e nasci. E foi aí que pude começar a gostar de ti. Nesse instante.
E é aí que te quero levar no Natal. Ao sítio onde nasci. Não ao Porto, atenção. A Londres. A quem nunca vi o sol. Mas que sempre vi a brilhar.
Crónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua
Visite o blog do autor: aqui
Olá, João.
Dizer o quê, perante tantas palavras já ditas?
E muito bem ditas, por sinal.
Também gosto muito de Londres, onde vivi histórias bem diferentes das suas, mas igualmente marcantes.
Londres é, de facto, um mundo.
Um mundo grande, imenso, onde a noção de indivíduo se esbate no pulsar do respirar da cidade.
Obrigada pelas recordações.
As suas e as minhas.
Eu só conheço a Londres do Notting Hill, mas fui transportada para uma cidade que gostava de conhecer… 😉
Olá João, somente agora li mais uma bela “conversa”.
Hum,… parece-me uma promessa, … sim uma promessa de amor.
Estarei errada? – Nas entrelinhas, sinto um homem com paixão, um vulcão, que deseja levar consigo, no Natal, aquela que me parece ser a realização dos seus sonhos. Nunca fui a Londres, mas por aquilo que já “vi”, é cheia de mistérios, mistérios esses que invadem o seu espírito inquieto, mas repleto de promessas amorosas. Sim! Vá a Londres e faça um favor a si próprio, continue assim a ser o homem que julgo que é.
Abraço-o com muita consideração
fatima ramos
Olá, Natália. Obrigado por ler. Londres tem mesmo o mundo todo lá dentro. 🙂
Olá, Ana Isabel. Notting Hill é a minha zona preferida da cidade. Um dia, talvez daqui a 137 anos, vou arranjar dinheiro suficiente para comprar aquela livraria. 🙂
Fátima, muito obrigado por ler e pela consideração.Que é recíproca. 🙂