Londres, o calcanhar do Madjer e um fulano que nasceu duas vezes – João Nogueira

Escrevo sempre ao domingo. Que é quando custa mais. Mas é quando as palavras aparecem. Fico a olhar para os meus dedos. Parece que estão a tocar piano. Escrevem sozinhos. Só ao domingo.

 O domingo é gabardine. Bege, ainda por cima. Não aprecio. Lamento!

 Sou um indivíduo do sábado. E da sexta. Os dias dos sonhadores de trazer por casa. Como eu.

 Sou cinéfilo. Mas do que se passa na minha cabeça. Graças a Deus, ou não, tenho canais que nunca mais acabam. Faço-me zapping, constantemente. Ora sou desporto. Ora sociedade. Ora um canal para adultos.

 Vivo de recordações. E de projecções. Aliás, sou o melhor cidadão do mundo a fazer projectos. Sou tão bom que, às vezes, faço abstenção à vida. E isso aborrece.

 Vou a Londres no Natal. Escrevo Londres, mas leio outra coisa qualquer. Uma coisa simples. Mas muito grande. Londres é o meu algodão doce de adulto. Arrepia. Os pêlos ficam erectos. É cinzenta, é fria, chove sempre muito. Chove, não. Cai saraiva. A torto e a direito. Londres cheira a mundo. Cheira a tudo. A coisas boas. E a más. Também cheira a suor e a catinga. É a vida! Aliás, é como a vida. Não engana!

 Em Londres, numa curva, não morri por um centímetro, enfiado num táxi. Em Londres, fui roubado. Quarenta e sete libras e um boné. E um cachaço! Em Londres, já grandito, numa loja, não fui a tempo de controlar os esfíncteres e tive azar. Eu, primeiro. A senhora da limpeza, depois. Portanto, só razões para gostar do sítio. Mas há mais.

 Foi lá que fui procurar pela vida. A que tinha perdido. Aqui. E se Deus está nas entrelinhas, dessa vez, vi-O. Vi amor. Não por uma mulher. Não por um pai. Não por uma coisa. Por uma pessoa. Que estava a pedir. Não sei se dinheiro. Não sei se amparo. Não sei se uma mãe. Não sei. Sei que lhe dei moedas. Sei que ele me perguntou se era muçulmano. Disse-lhe que não, que era português. Levantou-se. Abraçou-me. Gritou! Era português, também. Não sei o nome dele. Julgo que nunca soube. Não importa. O que importa são os olhos. Os dele, primeiro. Os meus, a seguir. Aquele abraço teve tudo lá dentro. Dele, as saudades. Talvez da língua. Talvez da terra. Da Pátria, que nunca chega a sair de nós. Talvez da vida que teve. Da minha, isso e o resto. Mais a vontade de começar de novo. Estivemos colados segundos. Chegou a pousar a cabeça no meu ombro. Cheirava muito mal. Mas foi ele, mendigo, coberto com uma manta imunda e de barbas sujas, que me tirou do meu pardieiro. Espero tê-lo ajudado, também. Não com as libras. Com o que pus naquele abraço. Um dos melhores que tive na vida.

A seguir, inspirei o ar gelado e deitei-o todo cá para fora aos pouquinhos. Estava outro!

 Foi lá, longe, que corri como um desalmado quando vi um senhor, negro como breu, com a camisola do meu clube. Entrei num autocarro que não era o meu para lhe falar. Nigeriano, de inglês que saía aos soluços, falou-me do Porto como se tivesse nascido na Corujeira. Lembrava-se do Madjer. Do calcanhar do Madjer, caramba! – O Deus. O super-homem argelino a quem os alemães, grandes, muito grandes, atiraram  kryptonite, em Viena. Mas ele esquivou-se. Era o super-homem! – Quando saiu, já na parte de fora, fez o gesto do calcanhar, riu-se para mim e ficou a dizer adeus. Mão preta, palma da mão muito branca, cheia de riscos e sarrabiscos. Um pêndulo a andar de um lado para o outro devagarinho. Dentes Imperfeitos. Olhos felizes e infelizes ao mesmo tempo. Os olhos. Sempre os olhos. Fiquei a olhar para trás, a dizer-lhe adeus. Ali, na parte mais órfã da cidade. Fez-me bem. Fiz-lhe bem. A vida é isto, uma troca. Um momento. E isso é tanto!

 Em Londres, vi mulheres com burkas, desconfiadas do mundo. Ao lado, mulheres de peito feito, quase como vieram ao mundo. Vi freiras a mexer os lábios e a segurar o terço. Vi ateus. Vi prostitutas a convidarem-me a subir e senhoras muito loiras a fazer o pino num varão. Vi igrejas a convidarem-me a entrar. Entrei. Não vi Deus, mas ouvi silêncio. Vi livros a pedirem para ser lidos. Vi brancos, pretos, feios, bonitos. Tudo. Conheci o Mustapha. Do Egipto. Indivíduo distinto, empregado de hotel. Camisa amarela, gravata vermelha, casaco aos quadrados. Disse-me que a vida só fazia sentido quando era vivida a dois. Disse-lhe que sim.

 Vi gente muito diferente. Toda igual. Todos à procura do mesmo. É sempre assim. Somos todos mais iguais do que diferentes.

 Em Londres, desapaixonei-me. Para me poder apaixonar outra vez. Morri para poder nascer. Custa. Muito. É preciso querer, primeiro. A seguir, coragem e fé em Deus. Para quem o tiver. Não vai lá com chá de cidreira. Nem com os amigos, vê lá. Estás entregue a ti. Desenrasca-te. Só lá vai com gritos cá dentro. Onde só tu ouves. Só com noites por dormir. Com olheiras. Cinzeiros cheios, talvez. Custa, pois. Muito. A ressaca é uma corda. És tu a puxar para o sítio onde já estiveste e tu a puxares para o sítio para onde queres ir. Se ganhares, nasces outra vez.

 Foi em Londres que ganhei. À noite, de braços empoleirados na ponte de Westminster, ao frio, sozinho, morri e nasci. E foi aí que pude começar a gostar de ti. Nesse instante.

 E é aí que te quero levar no Natal. Ao sítio onde nasci. Não ao Porto, atenção. A Londres. A quem nunca vi o sol. Mas que sempre vi a brilhar.

 
JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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