Do Luxemburgo para Angela, com Amor

Querida Angela,

Se soubesses o quão feliz me sinto por, finalmente, receber notícias tuas. Eu e as crianças estamos bem, e quero que saibas que todos os dias rezamos por ti, para que Deus Nosso Senhor te ajude, e te dê animo, nesta hercúlea missão, que te foi destinada, de Desgovernar a Europa e guiar o Mundo.

O nosso pequenino Desgoverno passa os dias a falar em ti. Devias ver como ele cresceu, entretanto. Está um rapagão. E não tenho quaisquer dúvidas de que um dia ele se venha a juntar a ti, e te acompanhe nas tuas missões, pois há nele o mesmo espírito civilizacional que tu possuis, a mesma inclinação natural para as grandes causas humanitárias, e esse desejo, que só as almas santas possuem, de construir um mundo cada vez mais desigual.

Quanto ao Ministério da Deseducação, que ainda mal gatinhava quando tiveste de partir, foi recentemente distinguido, por um licenciado português, como a melhor criança da nossa democracia. Imagina tu que, com apenas três anos, ele é já o campeão nacional de sudoku, na categoria de dificuldade média (o equivalente a três estrelas na escala de Bolonha). E aqui entre nós, desconfio que não se vá ficar por aí. É que o miúdo tem a tua garra. Há nele uma força qualquer, um desejo qualquer de travestismo cultural; e não me admirava nada que daqui a uma ou duas legislaturas ele se venha a transmutar a si próprio e comece a assinar como Secretaria de Estado.

Pudessem ser todas as crianças de Portugal como os nossos meninos, querida Angela. Deus abençoou-nos. Essa é que essa: Deus abençoou-nos.

De resto, quanto às preocupações que me fazes chegar, digo-te, do fundo do coração, que elas não têm razão de ser. É verdade que o número de licenciados em Portugal aumentou, consideravelmente, nos últimos anos, mas tens de entender que uma licenciatura em Portugal não tem o mesmo valor, de todo, que uma licenciatura tem no resto da Europa. Aliás, um pouco como acontece com o euro. O que são cinco euros na Alemanha, por exemplo? Nada. Mas, repara, em Portugal cinco euros são o ordenado mínimo. Bem vês que não há razão para preocupações maiores. Para além disso só dez por cento dos licenciados portugueses é que são letrados. Ou desconheces, por acaso, que em Portugal, para se ter uma licenciatura, só é preciso pagar a propina? Não vês que aqui é tudo um faz de conta. Olha o Zé, por exemplo, aquele que veio jantar cá a casa, duas ou três vezes, e de quem tu gostaste muito. Então, o Zé licenciou-se por correspondência. E agora até já foi criado um portal na internet que se chama E-Licenciatura, onde são sorteadas, semanalmente, várias licenciaturas. Há quinze dias, vê lá, quase que me saía a mim uma licenciatura em Jornalismo. Dá para imaginar, eu, jornalista? Eu que nunca peguei num jornal? Eu, que a única língua em que me sei expressar, com alguma correcção, está praticamente morta? Se me saísse alguma licenciatura, ao menos que fosse para ser veterinário, pois sempre podia tomar conta de ti e dos miúdos quando adoecessem.

Mas bem, digo-te, não te preocupes. Estou certo de que isto não passa de uma moda, e daqui a dois ou três anos acaba-se esta coisa das licenciaturas. E então Portugal vai passar a ser o Portugal com que tu sonhas, e que na verdade já é: um país de analfabetos. Só que não licenciados. Serão só analfabetos, exactamente iguais a esses sete milhões de analfabetos que tens aí na Alemanha.

Como vês tenho-me esforçado imenso para melhorar o meu luxemburguês. E de hoje em diante, peço-te, é apenas em luxemburguês que nos devemos corresponder. O português deixou de fazer sentido. Era uma língua demasiado pesada para expressar a leveza civilizacional dos nossos tempos. Estava muito cheia de tradição. Felizmente o seu ensino já não faz parte do currículo escolar (bem, já quase nada faz parte do currículo escolar). E são também poucos os programas, das televisões nacionais, que ainda a utilizam. Na verdade, só aqueles dez por cento de letrados que existem no país é que ainda mostram alguma resistência em abandonar uma língua que está, decididamente, morta. Mas felizmente a língua não é dos letrados. A língua é das ruas, e nas ruas grunhe-se cada vez mais. O próprio Desgoverno, diga-se, tem-se mostrado incansável nesse sentido. Depois de um primeiro ensaio, com o acordo ortográfico que introduziu a língua brasileira em Portugal, e o qual não serviu senão para testar a nossa capacidade para assimilar uma outra língua, o Desgoverno está já a preparar um acordo ortográfico geral e definitivo com o Luxemburgo. Em breve voltaremos a ser os grandes Poetas da Europa.

Que Deus Nosso Senhor e a Senhora de Fátima do Luxemburgo te guiem.

Com amor,

Os teus meninos.