Mãe, olha o barquinho! – João Nogueira

Mãe, olha o barquinho! Tinha dois anos e foi a primeira frase com sentido que disse. Foi uma das últimas também.

 A vida é uma viagem. De barco. Às vezes boa. Às vezes não. Troveja muito. Enjoa.

 A minha, como a de todos, é assim. Ora sol, ora chuva. Quando é chuva é só daquela que molha tolos. Miudinha. Ainda bem.

 No início dos meus Descobrimentos, lá muito para trás, as águas eram mansas. Quentinhas. Os meus pais eram o Mediterrâneo, onde eu flutuava, com as pernas esticadas e os braços bem abertos. Era bom. Nunca havia ciclones. O início da viagem era eu, de polegares encorrilhados, depois do banho de sexta-feira. Sim, de sexta-feira. Só! Lamento. Pelos que me rodeavam! Também era eu a entornar o sumo inteiro do calippo de limão na camisa branca. Aquela de ir à missa.

 Lá atrás, no início da cronologia, havia amigos a torto e a direito. Bocas besuntadas de bolachas de chocolate, calças de bombazina com remendos, um dois três macaquinho chinês, sebentas com filas de “quês de quaquá e pês de pato” e cheiro a terra molhada. E molezinha.

Os amigos eram isto. E chegava. E sobrava. Naquele tempo, no meu paleolítico, não existiam teorias disto ou daquilo. Não havia segundos sentidos. Nem metáforas. A inocência é o melhor período da minha história. De longe, caramba!

 O amor chegou nessa altura. Não aquele que vem com fogo, claro. Aquele que sabe a chicla de tutti-frutti. O que não queima. Escrevi a primeira carta nessa altura. A seguir fiz um barco de papel. Barco, não. Um bote manhoso. Nunca fui bom a trabalhos manuais.

 Meti-o no bolso do quispo da menina e, à socapa, fui-me embora. Dizia assim:

Rio Tinto, 7 de febreiro de 1987

Crida Bea,


Gosto do teu xeirinho. Gosto da bluza azul clarinha que trases oje ( ou rôcha, ainda não çei as cores) e da bluza de folhinhos que trousseste ontem. Gosto dos teus demtes de laite branquinhos e até gosto daquele que está a abanar. Gosto que não tenhas brincos. Gosto do teu narisinho peqenino sempre limpinho. Gosto cuando falas comigo e a tua bôca cheira a paxta dos demtes . É fresquinho.


Gosto da tua letra redondinha ( apezar de teres que melhorar no quê de quaquá maiúsculo). Gosto de te oubir ler aquelas palavras difisseis com um ror de sílabas. Sabes, gosto muito de ti e de estar á tua beira no recreio a comer sereijas. Obrigado por ontem me teres dado metade do teu molete com jeleia.


Tinha sete anos. Continuo sem saber as cores. Mas, mesmo com o quarteirão e meio de erros ortográficos, nunca escrevi nada tão bonito. Nunca. Nem sequer daquela vez em que, depois de um acidente, escrevi uma poesia na declaração amigável, dedicada ao condutor do veículo B. Rimava e tudo. Dizia qualquer coisa como isto. Tu, que me abalroaste quando eu vinha da labuta, és um bocadinho filho da. Não me recordo do resto. Sei que ele ficou emocionado.

 Lá para os quinze, quis ser activista. Ou comunista, era igual. Andar de altifalante, berrar dentro dos ouvidos dos outros e dizer que temos de ser uns para os outros. Sonhava com uma barba de sete meses, com um megafone e ir por aí fora. Convicto. Seguro. Capitão de mim mesmo. De costas direitas. A dizer coisas bonitas. As palavras podem ser tremores de terra. Fazem patinar. Fazer a espargata.

Atenção! Teria de ser com barba. Grande. Descuidada, até. Mas romântica. Como o sonho. Que é uma abébia que a vida nos dá.

 Depois, aos dezoito, a minha história ganhou sextas-feiras treze. Ceifaram-me dos meus. Subtraíram-me o Zé, o Luís, o Sérgio, o Carlos, a Ana, a Bia, a Joana e os outros. Fui para longe. Para um sítio onde as pessoas têm o hábito estranho de dizer os “vês” onde, de facto, se devem dizer os “vês”. Lisboa! Menino, moço, lá fui. A trouxa cheia de livros. De latim. Que para mim era chinês!

Domingo à noite. Eu, trezentos quilómetros e uma auto-estrada preta e infinita. Cada adeus parecia um adeus para sempre. Para trás, o Norte. Aquele que eu perdera.

Quando voltei, acabaram-se as olheiras. Alinhavei as pálpebras, outra vez. Nessa altura eu era de um sítio. Do Porto. Só.

 Mas um homem não é de um sítio. O sítio é pedra, ruas e águas-furtadas. Um homem é de onde tiver de ser. É nómada, se tiver coragem. Pelo menos até encontrar o tesouro. Fica a ser daí, então. Desse sítio. Que já não é pedra.

 Hoje, não sou só do Porto. Tenho outro porto. Que me abraça quando atraco. Que me diz que vai ficar tudo bem, quando choro. Tenho um porto que grita por um filho. Cresce-me o mar da Aguda nos olhos, quando grita por um filho. Eu sei que o tempo passa, Amor. Está quase.

Estou a meio da viagem. Dobrei o Cabo das Tormentas. A Índia está lá em cima. Já a consigo ver. Estou no Índico, tranquilo da vida. Passou um milénio e estou outra vez a flutuar no Mediterrâneo, quentinho. Aqui, no Índico.

 A inocência voltou, caramba! Sou outra vez o menino que disse Mãe, olha o barquinho!

 Em mim, correram exércitos de visigodos e multidões de fenícios. Correram suevos e galoparam mouros. Correram como loucos. Gente que construiu a minha história. Gente boa. Uns ficaram no século dezasseis. Outros no dezassete. A vida é assim mesmo.

 Estico as pernas para descansar. Fecho os olhos. Vejo-te a rir, em Ponte de Lima. Cantas à desgarrada, com os velhinhos. Danças o vira, também. Vejo-te em Lisboa. Tiras uma folhinha da Oliveira onde está o Saramago. Dás-ma. Pedes-me para nunca a perder. Vejo-te em Santana. Dizes-me que este é o Balú, esta é a Vanda, aquelas são a Marta, a Tânia e a Ana e aquele é o Nico. Vejo-te no Porto. Dizes que os Clérigos são bonitos, mas que Belém é mais. Digo que não estás boa da cabeça.

 Tens os olhos mais bonitos do mundo. Não pela cor. Mas por aquilo que eles têm lá dentro. Uma Mulher. Que também diz Mãe, olha o barquinho!

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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