Mãe… – João Nogueira

Não sei se a minha mãe é a melhor mãe do mundo. Provavelmente não é. Ainda bem!

Tem cinquenta e cinco anos. Parece que tem menos. Vinte!

Não acredito em Deus. Mas Deus existe.

A minha mãe é minha mãe por casualidade. Calhou. Lotaria.

Chama-se Clarinda. O que lamenta. Pudera!

A minha mãe tem cavalos a baterem-lhe no peito. Mas cavalos que galopam a mil. E são bonitos. E cheiram bem.

Cá em casa somos quatro. Aliás, cá em casa somos um. Eu, a Ana, o meu pai e a minha mãe. Um, portanto.

É Julho, não é suposto ser sentimental. Perdão. Vou continuar, no entanto!

Não tenho uma mãe que se veste à mãe. Não usa permanente. Nunca a vi com a cabeça enfiada naqueles secadores que secam os rolos. Usa sapatos de tacão alto e calças justinhas. Calça o 37. Se gostar muito de uns sapatos e só houver o 35, traz na mesma. Se for o 34 escarafuncha-se mais um bocadinho e ele entra, também. Só Deus Nosso Senhor – aquele que não existe – sabe o estado em que ficam os pezinhos da minha mãe. Mas ela traz.

A minha mãe tem cinquenta e cinco anos. Há quarenta e dois que não tem mãe. E mesmo assim acredita em Deus. Diz que ter fé é confiar. Lamenta que eu a não tenha.

Não interessa se sou ateu, mãe. Interessa que sou teu.

Foi mãe aos treze. Mãe do irmão mais novo. E dos irmãos mais velhos. Mãe do pai, também. Do dela.

Escangalharam-lhe a adolescência. Ceifaram-lhe a boneca. Aquelas desmontáveis. Arrancaram-lhe peça a peça. Não escreveu cartas de amor. Daquelas que parecem um inquérito e que têm quadradinhos no fim para colocar uma cruz. Maria Odete, queres namorar comigo? Sim? Não? Talvez? O teu pai não te deixa porque eu sou portista?

Não tinha um ursinho a quem se agarrar à noite. Também não queria. Queria a mãe.

Perdeu o colo. Ficou com olhos pequeninos. Engolia em seco. Doía-lhe a garganta. Tinha febre. Era sempre noite. Só se lembra de ouvir sinos.

Às vezes fala-me disso, com um mar salgado nos olhos e com o queixo a tremer. Digo-lhe que imagino o que deve ter sentido. Diz-me que não imagino nada.

Na cronologia da vida da minha mãe, os primeiros séculos foram mesmo filhos da mãe. Foi velha muito nova. Aos vinte, a cara deixou de ser pesada. Deixou de ter músculo. Daqueles fortes, que levantam um haltere de um milhão de quilos. Aos vinte, veio a Primavera. E por lá ficou.

A minha mãe cresceu. Esguia, perna firme, anca à Cleópatra, fila de dentes brancos. Brancos e todos. Sobretudo todos! Olhos com o mundo lá dentro. Castanhos. Verdes quando está ainda mais feliz. Lá dentro, as viagens que fez. As boas. Foi ao Brasil, e ainda hoje tem o Pão de Açúcar, o Corcovado e um neguinho pequenino nos olhos. Aprendeu a pôr as costas direitas e a ser altiva com o Cristo Rei. Do Quénia trouxe os abraços aos Masai Mara, uma tribo de gente muito grande e muito magra, que dormia em casas minúsculas, feitas de excremento, com uma vaca lá dentro. De Amesterdão, a inocência. Não percebia o que é que marmanjonas loiras, de peito grande e coxa grossa faziam em montras a rirem-se para os homens e a chamá-los. O meu pai lá lhe explicou que estavam a dar Religião e Moral. Do México, trouxe os noventa e um degraus da pirâmide de Chichen Itza. Subiu-os. Um a um. De baixo para cima. Tal como na vida. Como na vida dela.

A vida pode ser ao contrário. Não tem de ser como deve de ser.

Hoje é um vulcão. Nunca está em deserupção. Não sabe, sequer. A minha mãe é uma corrida de cem metros em sete segundos.

É mulher! Canta Zeca, trauteia, fora de ritmo, a Caipira Pira Pora da Elis Regina e, volta e meia, diz estrofes do tempo em que ia para a rua dizer que o povo unido jamais será vencido.

Nasceu num sítio chamado Taralhão. O que lamenta. Pudera!

Mãe, escuta. Estava bem dentro da tua barriga. Era quentinho. Lembro-me de flutuar e de fazer o pino no teu líquido amniótico. Lembro-me de te ter ali à mão. E de te ter ali ao pé. Tentaram cortar-nos o cordão umbilical. Tentaram, suaram, voltaram a tentar, caiam-lhes pingas da testa, pareciam as Cataratas do Niagara. Desistiram, mãe. Eu mais tu dá um. E o um é o maior algarismo de todos.

A minha mãe é de gancho. Não se fica. Tem pelo na venta, não tendo. Quando soube que eu estava na fila da miséria, na 3ª classe, foi dizer à professora que não apreciava por aí além a terminologia que ela atribuía às filas e que, no dia seguinte, me queria dali para fora. Mandou-a para o maneta sem pôr a mão nas ancas! No dia seguinte a fila chamava-se fila dos meninos espectaculares mas que ainda não sabem a diferença entre o sujeito e o predicado nem o que é gado caprino e que, apesar de pareceram burros, não são. Achei o nome ligeiramente curto, mas melhor. No dia seguinte eu já não estava lá.

Não acredito em Deus. Mas Deus existe.

Deus sou eu e tu, mãe, quando tomamos café e bebemos vinho. Ou quando estou doente e ainda me dás beijinhos e papas de leite. Deus é isto. Uma coisa invisível, sem cara, sem número de contribuinte. Deus é um arrepio que me faz querer abraçar-te com tanta tanta força e fechar os olhos com tanta tanta força.

Acabou o enigma.

A minha mãe é minha mãe por casualidade. Calhou. Lotaria.

Graças a Deus!

 
JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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