Mais morto do que vivo

Conheci ontem a inolvidável sensação de ter morrido e voltado a nascer, enquanto assistia ao serão a um novo e empolgante capítulo de uma telenovela que começou por me encher as medidas e, em pouco tempo, passou a servir ela própria de medida na comparação com produtos do mesmo género que passam noutro canal mas de que não gosto tanto.

Desconheço se existe um grande número de pessoas a pensar como eu, mas não fico indiferente aos seus argumentos e calo-me, quando me confrontam essas pessoas que alinham em defesa das outras que reafirmam a tese de que o espírito humano, sendo eterno, sobrevive à morte física de uma pessoa. Acreditam elas em que, quando esta ocorre, e ainda antes que o indivíduo que morre tenha tempo de ponderar, com base nas circunstâncias em que viveu, sobre a natureza dos atos que praticou, procedendo a uma análise objetiva ao que podia ter feito enquanto estava vivo e não fez, vê passar-lhe diante dos olhos em formato de fotograma, mesmo que estejam fechados, os acontecimentos essenciais que tornaram o seu quotidiano ou o das pessoas que o rodearam numa experiência de vida tão agradável que o fizeram não querer perder a oportunidade de continuar entre elas, ainda que já da maior parte desses amigos ou dos factos que tiveram lugar ele não se recorde ou julgue esquecidos nalgum compartimento estanque da memória e guardados a sete chaves no interior desse grande armazém de pensamentos, cuidadosamente empilhados uns sobre os outros, que é o cérebro.

Falo de uma experiência de quase-morte que me deixou de queixo caído ontem à noite, enquanto assistia, no pequeno ecrã de trinta e duas polegadas que tenho pendurado na parede da sala, ao resumo da minha vida que se confundia com o do episódio anterior dessa novela que eu na véspera não tivera tempo de ver. O programa não era tão mau que não pudesse sobreviver-lhe, mas causa arrepios só de pensar que pudesse ver desfilarem-me diante dos olhos, arregalados de espanto, tantas cenas que me recordava de ter vivido na primeira pessoa, ainda que não fosse na pele daqueles atores que as interpretavam, por sinal tão bem que se lembravam melhor do que eu de todas que haviam memorizado de um guião que recebiam uns dias antes para estudar em casa, de modo a que nem eu pudesse apontar-lhes o dedo acusando-os de não darem importância ao papel que estavam a desemprenhar e que era o meu, retirando realismo às cenas e por conseguinte menosprezando os meus problemas do dia-a-dia que, afinal de contas, talvez não estivessem tão longe de serem também os seus na vida real.

Numa sensação de irreprimível desconforto, senti afundarem-se-me as costas e, ao ser engolido como por uma onda, pensei que no lugar do sofá de pele sintética que havíamos comprado recentemente, devia haver um que não fosse tão fundo. Tinha as pernas esticadas e apoiadas num puf mas faltava-me o apoio de braços onde me pudesse agarrar. Naquela situação de puro desespero, vi-me de tal modo enredado de pés e mãos atados por uma corda ao pescoço, que me senti impotente para travar uma queda iminente, sabendo que de nada me valeria ter um estatuto social à medida do bom salário que auferia e que me permitia viver desafogadamente, se nem o maior saco de dinheiro que eu pudesse reunir era suficiente para oferecer em troca de alguém trocar de lugar comigo ou que me desse a certeza de que nada daquilo estava efetivamente a acontecer.

Rever partes das minha vida passada, sendo reproduzidas em imagens e sons difundidos por via eletromagnética através de um monitor de cristal líquido tão fino que parecia estaladiço, não veio a revelar-se uma tarefa nada fácil, sobretudo para quem pretendia que no balanço final da sua existência, esta se revelasse tão pródiga de acontecimentos que nem o mais afamado realizador de Hollywood, por mais que tentasse, haveria de conseguir resumi-la num mero episódio de quarenta e poucos minutos, cuja duração só variava em função do número de intervalos que metiam enquanto estivesse a ser exibido.

Comecei por rever, na figura de uma entrevista fictícia a um candidato que foi rejeitado, o começo pouco auspicioso no primeiro emprego que tive.

Depois, na cena do lago em que o casal apaixonado trocava juras de amor eterno, a cara de espanto de uma colega que se tornou minha namorada no dia em que inesperadamente a convidei para um jantar romântico em minha casa; e, por outro, no breve instante da primeira discussão que tiveram antes de se reconciliarem com um beijo, os momentos de satisfação que também nós dois sentíamos quando, ao fim de um ou dois dias em que não nos víamos, fazíamos as pazes e jurávamos, de mão dada, não voltar a discutir, pelo menos até novamente sentirmos ciúmes um do outro.

Não muito longe dali, num jantar que celebrava uma boda, lembrei-me de ter conhecido a minha esposa na praia e de termos casado em menos de um ano, depois de termos antecipado em duas semanas a nossa viagem de lua-de-mel a Porto Santo, a bordo de um paquete com passagem no regresso pelas Canárias.

Pouco depois, vendo no recinto de uma escola, numa roda de amigos, rapazes e raparigas de riso contagiante falando alto, espantando de perto de si os colegas que aproveitavam a pausa do intervalo para pôr o estudo em dia, recuei ao tempo da minha infância e pensei no destino que teriam tido os meus amigos que eram hoje homens e mulheres da minha idade. Falavam, com a mesma altivez que tinham tido os pais na idade deles, de assuntos para os quais, nem a uns nem a outros haviam dado qualquer tipo de preparação em casa, os mesmos de que, aos mais velhos, noutro tempo, nem era permitido falar onde quer que fosse.

Descobri depois na vista aérea de uma pequena cidade do interior de um Estado brasileiro menor, que no seu conjunto eram escassos os aspetos em que ela diferia, a não ser no tamanho, da pequena aldeia beirã onde nasci. As semelhanças começavam em que as casas eram baixas e havia muita gente na rua, mas não ficavam por aí. Via-se uma rua principal, para onde convergiam as artérias mais pequenas vindas das mais diversas direções, ao longo da qual se distribuíam algumas lojas, a farmácia, o posto médico e o café Central, antes de desembocar num imenso largo ocupado ao centro por um coreto com bancos e um jardim em redor, que parecia feito por medida para acolher o grande número de fiéis que se aglomerava diante da porta principal da igreja que nunca se fechava, nem àqueles que a qualquer hora do dia procuravam o apoio espiritual do padre, nem aos que, e era só para o apoiarem mas sem que ele desconfiasse, acorriam massivamente para lhe encherem a Igreja ao domingo.

Constatei com agrado que apesar de ser diferente da cronologia real dos acontecimentos, a ordem dos factos apresentada no ecrã trazia algumas vantagens. Desde já a de me ter posto a namorar com uma colega antes de vir a casar com a melhor amiga dela, poupando-me desta forma a uma série de inconvenientes.

Por fim, no vaivém de uma urgência, que ninguém diria pertencer a um hospital, de tal maneira era reduzido o número de pacientes que havia por atender, à vista de duas auxiliares de ação médica que empurravam uma maca vazia, um rapaz de queixo apoiado nas palmas das mãos esperava sentado a vez de ouvir o seu nome na voz de uma enfermeira que se fazia anunciar à distância por uma coluna de som que emitia um som estranho antes de ela começar a falar. Como se seguisse cabisbaixo um carreiro de formigas, era como se ele carregasse sozinho o peso do mundo nas costas e eu, que até ali permanecera em silêncio, sentindo pena dele, murmurei o meu nome, e fechei os olhos. Não sei durante quanto tempo estive a dormir, mas acordei em sobressalto, dominado pela terrível sensação de estar a despertar, não de um sonho mas de um pesadelo no qual só a voz da minha mulher, a chamar-me, era mais audível do que o meu próprio choro.

Porém, mais do que ainda mal refeito do susto, senti-me aliviado por ver que estava vivo e com ela ao lado.

Recuperei rapidamente e, sentindo-me renascer das cinzas, espreguicei-me. Ao invés de resmungar por ter despertado aos supetões, abri espaço na minha cara para um sorriso e gritei tão alto o meu amor por ela que não só os vizinhos certamente me escutaram, como ela deve ter ficado a pensar que, afinal, nem sempre quando eu me sentava à noite diante da televisão, ainda que parecesse por vir estafado do trabalho, estava mais morto do que vivo.

abiliobernardo_logoCrónica de Abílio Bernardo
Crónicas Vadias
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