Maria de Lourdes Pintasilgo: Revisitando o Ativismo no Feminino

Hoje escrevo sobre Maria de Lourdes Pintasilgo, já que se aproxima a data de aniversário da tomada de posse do V Governo Constitucional, por ela liderado, em 1979. Foi um governo de iniciativa presidencial e a única solução encontrada pelo Presidente da República de então, o General Ramalho Eanes, na altura, com a concordância de uma maioria de esquerda, que assegurou esta solução governativa até Janeiro de 1980, altura em que se deu lugar a eleições intercalares.

Não se trata de uma biografia, logicamente. Trata-se sim de uma crónica, que segue três linhas de pensamento, em torno das quais me detenho, acerca deste nome incontornável na vida política do nosso país, no rescaldo do 25 de Abril de 1974 e do PREC (Processo Revolucionário em Curso): Maria de Lourdes Pintasilgo. Enquanto ícone das lutas femininas e do apelo e do símbolo que abre caminho à participação ativa das mulheres na vida política dos países e claro do mundo; Enquanto referência para a Democracia portuguesa, já que é um ícone da luta justa por um país livre e democrático, com a participação do povo; Na perspetiva da sua imensa responsabilidade do ponto de vista da religião cristã e o apelo à participação dos leigos e, das mulheres leigas, na vida ativa do catolicismo.

Começo por salientar que poderão os leitores ver o nome e apelido de Maria de Lourdes Pintasilgo, escritos de forma diferente, que ora aparecem como escrevi aqui, ora enquanto Maria de Lurdes Pintassilgo ou ainda como Maria de Lourdes Pintassilgo, bem como Maria de Lurdes Pintasilgo. Tais ocorrências surgem porque o português é de facto uma língua viva, e ocorreram reajustamentos ao longo dos tempos, pelo que, apesar de ser um preciosismo meu, confesso, não quero deixar de lhe fazer referência, pois aparecem todas estas variantes, do nome próprio e do apelido, em diversos artigos, relatos e peças de jornais ao longo da sua história e até aos dias de hoje.

Aqui nesta crónica, será o seu nome designado enquanto Maria de Lourdes Pintasilgo, pois acredita-se ser esta a designação original, quer do nome próprio, quer do apelido de família, conforme documentação biográfica, inclusive dados referentes à sua vida académica, nomeadamente nos anos de liceu.

Maria de Lourdes Pintasilgo é uma referência incontornável na história da política portuguesa e na Europa, por ser a única mulher, até ao momento, que desempenhou o cargo de primeiro-ministro em Portugal e ainda, por ter sido convidada a assumir esse cargo apenas dois meses após a tomada de posse de Margaret Thatcher, em idêntico cargo no Reino Unido.

Maria de Lourdes Pintasilgo constituiu-se assim como a segunda mulher a assumir o cargo de primeiro-ministro na Europa, tendo liderado o V Governo Constitucional de Portugal, entre Julho de 1979 e Janeiro de 1980. De seu nome Maria de Lourdes Ruivo da Silva Matos Pintasilgo, nasceu a 18 de Janeiro de 1930, em Abrantes e faleceu a 10 de Julho de 2004, em Lisboa. Filha de Jaime de Matos Pintasilgo e Amélia do Carmo Ruivo da Silva Matos Pintasilgo, cresceu numa família alargada, de tradição agnóstica e não cristã, uma família assumidamente republicana e laica.

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Maria de Lurdes Pintassilgo recebeu por duas vezes um prémio de mérito, de âmbito nacional no liceu onde estudou.

Curiosamente, ou talvez não, Maria de Lourdes Pintasilgo vai precisamente assumir-se, por oposição, de certa forma, à tradição familiar, como cristã e católica, tendo mesmo desempenhado cargos de liderança eclesial desde a sua juventude e tendo protagonizado a liderança, entre o grupo de mulheres católicas.

Foi durante a sua vida académica, sempre de sucesso e destaque, que Maria de Lourdes Pintasilgo, encontrou a base para a sua matriz ideológica profundamente cristã e da qual nunca se afastou em toda a sua vida. Por ter sido sempre uma aluna exemplar, recebeu por duas vezes um prémio de mérito, de âmbito nacional, no liceu onde estudou (o Liceu Filipa de Lencastre). Já nesta altura a jovem Maria de Lourdes Pintasilgo era devota do ponto de vista confessional, neste caso católico.

Mais tarde enquanto estudava Engenharia Química, no I.S.T. (Instituto Superior Técnico), e onde se licenciou, tomou contacto com o núcleo de jovens mulheres universitárias católicas, e abraçou esta causa de “corpo e alma”, assumindo a parir de então posições de liderança ou de destaque, quer nos grupos de mulheres católicas, quer posteriormente nos grupos de leigos católicos.

A sua presença e liderança nos grupos de leigos católicos, com total entrega e dádiva, deu relevo ao importante papel que os leigos tinham e passaram a ter cada vez mais, na implantação do catolicismo na sociedade, na defesa dos valores cristãos e da doutrina cristã no seio das populações. Por outro lado, Maria de Lurdes Pintasilgo é o exemplo de uma vida, onde se destaca o importante e fundamental papel da mulher no cristianismo e na política e, em como um e outro podem estar “de braços dados” na defesa das causas sociais, bem como na própria luta das mulheres pela presença e ativismo nas sociedades, na política, na cultura e no próprio cristianismo.

A obra que Maria de Lourdes Pintasilgo deixa é vasta e de imensa diversidade, passando pelos livros, ensaios, prefácios, relatórios e conferências, artigos vários em jornais ou revistas. Um legado imenso, onde os temas principais abordam com frequência o papel das mulheres e a sua participação na cultura e na política, na implementação de medidas socialmente visando a promoção da qualidade de vida das pessoas e, o desenvolvimento, passando ainda por teorizações e reflexões acerca da renovação da praxis e da teoria políticas e, claro está, o compromisso cristão e a espiritualidade inerente ao homem e à mulher. “As dimensões da mudança”, “O Graal, um movimento do nosso tempo”, “As minhas respostas”, “Afrontamento”, “Imaginar a Igreja”, “Sulcos do nosso querer comum”, dentre outras, são algumas das obras que deixou escritas, marca inegável daquilo que era, uma mulher em defesa do género, em defesa da doutrina social da Igreja, em defesa da prática renovada das políticas ajustadas às necessidades sociais e das pessoas.

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Em 1986 Maria de Lurdes Pintassilgo chegou a apresentar-se como candidata às eleições presidenciais.

Por outro lado, Maria de Lourdes Pintasilgo, associou sempre à sua vida política os seus valores cristãos e tentou empregá-los, em prol daquilo que considerava o bem comum. Dizia Maria de Lurdes, a certa altura da sua vida, mais precisamente em 1986, ano em que ainda se apresentou como candidata à Presidência da República, nas eleições presidenciais, que tiveram lugar em Portugal, num discurso no Seminários dos Olivais: “É como cristã que abordo a política. É como cristã que estou motivada para a política. A minha resposta às situações políticas nasce e ganha corpo na minha condição de cristã. Porque para mim o cristianismo não é doutrina, nem moral, nem sequer teologia. É uma experiência de comunhão com Deus, com outros homens e mulheres, que me impele a agir e a tentar contribuir para que a Sua Palavra dê fruto. E um fruto que permaneça.(…)”.

Esta postura pauta a vida de Maria de Lourdes Pintasilgo, que nunca abdicou dos valores cristãos mais essenciais que trazia consigo, no âmago do seu ser, tal como nunca abdicou da justiça social e da luta democrática.

Esta abordagem da vida e do mundo, teria resultado das experiências de Maria de Lourdes Pintasilgo no meio internacional cristão. A jovem mulher Maria de Lourdes Pintasilgo pertenceu a grupos internacionais cristãos, foi presidente da JUC/F – Juventude Universitária Católica Feminina (1952-1956) e posteriormente da Pax Romana – MIEC (Movimento Internacional de Estudantes Católicos), entre 1956 e 1958. Esta vivência cristã modificou, segundo a própria afirmava, a sua forma de ver a vida, os parâmetros sociais, as doutrinas e a sociedade.

Mas se Maria deixou marcas da sua passagem e reflexões fundamentais baseadas na sua doutrina e ainda, nas suas convicções religiosas, sem dúvida as pessoas conhecem bem melhor o seu nome, por aquilo que representou na política e pela sapiência e honestidade intelectual, que sempre pautaram a sua forma de estar na política. Mesmo quando assumiu o lugar de primeira-ministra de Portugal e numa época em que havia uma influência forte da Teologia da Esperança e da Teologia da Libertação, mesmo no seio de movimentos católicos mais conservadores, Maria de Lourdes Pintasilgo não vacilou nas suas convicções e crenças. Sempre inspirada pela Teologia das Realidades Terrestres e pela Teologia do Laicado e nunca “abriu mão” de as expressar e reproduzir na sua vivência enquanto cristã, livremente, sem as imiscuir com as suas funções de forma perniciosa e assumindo-as, com transparência e rigor; as suas crenças e fé, jamais permitiram que isso se sobrepusesse de alguma forma à sua isenção nas políticas a serem seguidas dentro de um contexto de maior justiça social e no sentido do mais perfeito respeito pela laicidade do Estado e das práticas políticas.

Por outro lado, claro está, que sendo o seu governo amplamente participado por militares, Maria de Lourdes referiu sempre genuinamente, a sua preocupação em jamais pactuar com um governo militarista, ou que de alguma forma fosse contra tudo o que ela própria e a doutrina de vida que defendia, protagonizavam. Terá mesmo deixado muito clara esta sua posição, numa conferência a 1 de Agosto de 1979, na tomada de posse oficial da legislatura do governo por ela chefiado e sob a cobertura do jornal “The Guardian”, como resposta a algumas afirmações publicadas noutros jornais que pareciam querer dar a entender que Maria de Lourdes, com três dos seus Ministérios chefiados por militares e perante um Presidente da República militar, estaria ao serviço desta “causa”; a isto terá Maria manifestado oposição, deixando claro, precisamente, que não trairia os seus valores e fé, nem a forma como via o mundo segundo a doutrina cristã levada à prática. Terá dito explicitamente: “Nunca serei instrumento de um regime militar.”

Maria de Lurdes Pintassilgo Willy Brandt
Maria de Lurdes Pintassilgo enquanto Primeira-Ministra, à conversa com o chanceler alemão Willy Brandt.

Por alguns criticada também por isto, pela sua fé e porque tal podia colocar em causa a legítima e necessária separação dos poderes, numa altura do “pós 25 de Abril”, quando nem toda a fé e credos eram bem recebidos por muitos, Maria teve o mérito de ser aquilo que sempre foi, uma católica convicta de acordo com a doutrina do chamado catolicismo social. Sobre Maria de Lourdes e a sua fé e credo assumido, diria a Revista do Expresso de 21 de Julho de 1979: “Se é católica é, mas, «catalaica» e progressista”.

Sobre isto, apenas o PS teria abordado a partir das bancadas parlamentares e em tom de crítica, a condição de Maria de Lourdes como católica. Mas Salgado Zenha, vem ele mesmo e logo na 1ª sessão de apresentação do programa de Governo de Maria de Lourdes Pintasilgo, endereçar-lhe os maiores elogios e desdramatizar esta crítica vinda do seio do PS, com a seguinte resposta: “Não me referirei às suas convicções religiosas, porque penso que em política elas são irrelevantes: todos os políticos são julgados pelo modo como atuam e não pelas convicções a que dizem ser fiéis”.
Na verdade naquilo a que chamo de “fundação do seu Eu mais profundo”, no seio familiar onde Maria cresceu e se desenvolveu enquanto pessoa, houve sempre a marca positiva das escolhas de um ideal de sociedade, republicano e laico, a que Maria de Lourdes nunca “virou as costas”, apesar de ser assumidamente católica.

A verdade é que as Esquerdas da altura, permitiram que Maria de Lourdes, apartidária e leal a Ramalho Eanes, governasse, dando maior relevo ao seu papel enquanto mulher e democrata, do que à sua confissão e dogma de fé. Fizeram-no com justiça.

Maria de Lurdes Pintassilgo Ramalho Eanes
À esquerda Maria de Lurdes Pintassilgo, ao centro Ramalho Eanes.

Se é verdade que no seu caminho, no âmbito e contexto daquilo que eram as escolas, por alturas da sua formação, no antigo regime – o “Estado Novo” – Maria encontrou nas doutrinas do catolicismo social, na Teologia das Realidades Terrestres e na Teologia Laica, o encontro com a sua fé mais profunda, cristã no mais profundo sentido do que é ser cristão e católico. No que de mais social tem a doutrina do catolicismo, também é verdade que Maria nunca abandonou a matriz ideológica de uma sociedade republicana e laica, de uma sociedade livre, justa, igual e fraterna, verdadeiro fundamento do caminho republicano e laico do ideal de sociedade.

Maria conseguia assim reunir, de certa forma, o que de melhor os dois “lados” tinham, convergindo naquilo que é na verdade o fundamento dos valores da Igualdade e da Liberdade na sociedade, quer na participação dos “leigos” no catolicismo e nas atividades eclesiais, quer na participação das pessoas na vida ativa da sociedade e nas políticas levadas à prática. Bem como no que se refere à participação das mulheres, ou na vida e no seio do cristianismo e das suas instituições, quer na vida política e social.

Mas claro, esta é apenas uma das várias perspetivas possíveis, porque tanto se pode “amar” esta grande senhora, por aquilo que nela converge entre a doutrina cristã e católica e o ideal de sociedade republicano e laico, como se pode não gostar absolutamente, quer de um “lado” quer do “outro”.

Lourdes_PintasilgoPor isso mesmo, se uns sempre viram Maria de Lourdes Pintasilgo como uma mulher de convicções religiosas e políticas justas e rectas, conseguindo fazer a ponte entre doutrinas diferentes e até, de certa forma opostas, conseguindo ainda um amplo consenso entre as Esquerdas da altura. E não só no seio delas, outros há que a viam de forma bem mais negativa. Pode mesmo dizer-se que no Parlamento havia também um coro de críticas, sobretudo provenientes do PPD-PSD e CDS da época, que defendiam um outro tipo de cristianismo e de catolicismo, bem diferente das doutrinas defendidas por Maria de Lourdes Pintasilgo e também, bem distante das doutrinas revolucionárias da América do Sul. Defendiam ainda, claramente, outras formas de fazer política, matrizes ideológicas divergentes, numa época em que, apesar de tudo, ainda existia por parte de praticamente todos os partidos com representação na Assembleia da República, um respeito pelas suas matrizes ideológicas e onde a política, com tudo o que de negativo também trazia consigo, ainda respondia a essas matrizes levadas à prática, de forma bem mais próxima das pessoas, que, em resposta, também estavam presentes e envolvidas na vida do país e nas decisões políticas.

De certa forma, marca uma época de algum “glamour”, diria eu, da vida política portuguesa, onde todas as pessoas estavam empenhadas e interessadas, e a proximidade entre a política e os cidadãos e as cidadãs era muito real. Este “glamour”, claro está, iria desaparecendo aos poucos e os partidos, ora uns, ora outros, à esquerda ou mais à direita, mais conservadores ou mais libertários, numa ou noutra época, foram por vezes “desligando” o “fazer” do “pensar”, que é o mesmo que dizermos que, dissociaram a prática das políticas da matriz ideológica que lhes deveria ter dado origem. Tal sucedeu em muitas situações ao logo da história dos últimos anos do nosso país, lamentavelmente, para quem gosta da verdadeira política, aquela que chama as cidadãs e os cidadãos a participar e intervir, de acordo com agendas que respeitam matrizes ideológicas ajustadas às necessidades dos povos e que tentam dar resposta real ao apelo social de cada momento, sem no entanto, jamais, perder o seu referencial e tudo o que são na sua matriz mais profunda, aquilo que as faz ter um fundamento lógico e intelectualmente honesto.

Voltando a Maria de Lourdes Pintasilgo, saliente-se que nem só na Aliança democrática formada na altura da sua indigitação entre PPD-PSD, CDS e PPM, se teciam críticas à sua escolha para o cargo… Claro está que também à esquerda alguns a criticavam e mesmo no PS, uma ou outra crítica aparecia, embora isoladamente. Era um facto inegável que, Maria de Lourdes Pintasilgo pertencera à antiga família política do Estado Novo, tendo sido uma das “protegidas” até de Marcelo Caetano e, tendo estado envolvida na representação portuguesa e a nível internacional, em nome dos jovens e das jovens mulheres católicas, sempre durante o Estado Novo. Isto tudo e mais ainda, fariam de Maria de Lourdes um nome associado ao antigo regime…Uma mulher destacada entre outras mulheres, que se fez ouvir durante o antigo regime e foi premiada com mérito, ainda na sua juventude. Inegável esta sua história pessoal e política, mas logicamente aceitável para a maioria dos deputados parlamentares, pois que muito mais se ligavam estes factos anteriores à sua fé e às suas escolhas pessoais, o seu caminho e muito pouco ligadas estariam à política da época, que preferia ver em Maria de Lourdes, o mérito democrático.

maria_de_lurdes_pintassilgoClaro que é inegável que a sua origem é indubitavelmente a da “classe burguesa”, pai empresário, ligado à indústria das “lãs” em Castelo Branco, mãe doméstica, educação familiar republicana e laica. Mas também pela parte escolar a presença da doutrina católica. Numa época onde ainda se falava e discutia abertamente a “luta de classes”, percebia-se que num socialismo mais purista, mais ligado aos conceitos marxistas e leninistas e mesmo a Trotsky, poderiam sempre haver vozes discordantes com esta escolha. Quer pela proximidade de Maria à religião, quer pela sua anterior “ligação” ao antigo regime. No entanto, esta aproximação não era a do sentido político, de todo e as bases tidas como “burguesas”, eram na verdade comuns a muitas famílias e muitos dos deputados e deputadas no parlamento e em vários partidos.

Talvez por isso mesmo, na altura em que Maria de Lourdes foi escolhida para assumir o cargo de Primeira-Ministra, apenas uma ou outra voz se fizeram ouvir nesse sentido e foram ignoradas pela maioria à esquerda, que sabia ser necessária esta mulher num governo que seria sempre urgente para uma transição que se mostrava necessária e uma “ponte”, que apenas ela parecia poder estabelecer entre algumas fações.

Após a dissolução do governo de Mota Pinto, o General Ramalho Eanes anuncia eleições intercalares e a sua escolha para liderar o governo de iniciativa presidencial que teria de “vingar” até às próximas eleições legítimas, a serem marcadas entretanto: Maria de Lourdes Pintasilgo é o nome escolhido.

Poder-se-ia dizer que os “dados estavam lançados”, teríamos de aguardar umas duas ou três semanas até que tomasse posse o V Governo Constitucional, a partir da data de 13 de Julho, quando o General Ramalho Eanes, Presidente da República à época, anuncia a sua decisão de marcação de eleições legislativas intercalares, de dissolução da Assembleia da República e de nomeação de uma personalidade que assumisse a chefia de um governo ministerial capaz de “preparar o terreno” para o processo de eleições, mas que desse conta, igualmente, das matérias inerentes a qualquer governo de gestão.

Maria de Lurdes Pintassilgo Primeira Ministro
Tomada de posse do V Governo Constitucional que iria abrir caminho a eleições livres e informadas.

Este V Governo ficaria em funções entre Julho de 1979 e Janeiro de 1980 e seria designado pela própria Maria de Lourdes como “Marcha dos Cem Dias”… Aquela que iria permitir eleições legislativas legítimas, informadas e o fim dos governos provisórios ou de gestão… Enfim, que iria assegurar a manutenção de eleições democráticas regulares para todos os Orgãos de poder que dependem dos votos do eleitorado. E assim foi! Percebe-se claramente que a notoriedade da figura de Maria de Lourdes Pintasilgo surge num contexto complexo da vida política do país, que se enquadra em plena crise política e na derradeira tentativa de a solucionar, por parte do Presidente em funções.

Terá sido na sequência de uma crise política sem precedentes, que passou pela indigitação de Nobre da Costa para assumir a função de primeiro-ministro, por parte do então presidente da República, General Ramalho Eanes e na falha desta opção, que surgirá o nome de Maria de Lourdes Pintasilgo para este cargo, posteriormente.

Assim, a falta de acordo anterior das bancadas parlamentares, (que levaram aliás à queda dos I e II Governos Constitucionais), obrigou o General Ramalho Eanes, a chamar alguém por sua iniciativa para assumir o Governo; foi então opção do General, o nome de Nobre da Costa para o cargo de Primeiro-Ministro, não tendo o próprio no entanto conseguido o apoio partidário para aprovar o seu Programa no Parlamento. Acabou por ser rejeitado o Programa e, logicamente, porque o Parlamento é soberano, o lugar de Primeiro-Ministro do III Governo Constitucional foi colocado à disposição.

Surgiu então o nome de Mota Pinto, designado também pelo General Ramalho Eanes, para a liderança do novo Executivo. No entanto e mais uma vez, porque o Parlamento é soberano e a Assembleia é lugar de democracia e decisão política legítima, também Mota Pinto viu o seu Programa de Governo ser rejeitado pelas bancadas parlamentares, levando ao fim do IV Governo Constitucional.

Nesta sequência, o General Ramalho Eanes declara ao país publicamente, através da televisão em direto e fazendo parte das notas de última hora dos principais jornais e rádios desse dia e do seguinte, que decidiu marcar eleições legislativas intercalares perante o cenário político que se atravessava e indigitar uma personalidade para assumir a liderança do que seria o V Governo, aquele que levaria o país até às eleições.

O Expresso, na sua 1º Página de 14 de Julho de 1979, avançava já com os nomes possíveis para assumir o lugar de Primeiro-Ministro do Governo de gestão, dentre os quais destacava Maria de Lourdes Pintasilgo, Barbosa de Melo e Jacinto Nunes, como os três nomes mais discutidos para o cargo, ainda antes da dissolução da Assembleia da República.

Qualquer destes nomes não implicaria uma rejeição automática dos partidos à esquerda, isto é algo que os jornais avançam, sem referirem no entanto a posição provável dos partidos de direita, que de qualquer forma será tácita para muitos. Maria de Lourdes Pintasilgo surge como o nome mais provável no entanto, dado o facto de considerarem que colheria o apoio do setor “melo-antunista”, para além da aprovação do PS e do PCP. A ousadia jornalística em classificar Maria de Lourdes como “melo-antunista”, levaria mesmo à reação menos positiva por parte deste setor da política portuguesa.

Escreveria o Expresso :
“Maria de Lurdes Pintassilgo poderia suscitar uma «ponte» no Conselho da Revolução com o chamado «sector Melo-antunista» não suscitando também objecções do PS e do PCP. Qualquer dos outros nomes não teria oposição provável de socialistas e comunistas.”

Com esta citação e ousadia própria do jornalismo da altura, sempre “um passo à frente”, como lhe é devido a meu ver e ainda bem que assim era, percebia-se claramente que o nome de Maria de Lourdes era o mais provável a ser avançado, conseguido o apoio à esquerda e, por omissão, percebia-se também a ausência, de apoio à direita, mas sem consequências maiores que pudessem levar à queda de mais um Governo. É verdadeira a suposição avançada pelo jornal Expresso e dia 19 de Julho de 1979, o General Ramalho Eanes comunica a sua decisão, avançado com a indigitação de Maria de Lourdes Pintasilgo, para o cargo de Primeiro-Ministro do V Governo Constitucional. É este Governo que Maria de Lourdes conduz até às eleições seguintes.

A figura na política portuguesa de uma mulher como chefe ou líder de um Governo, é um avanço importante para as causas feministas e de lutas no feminino, quer se goste ou não da personalidade em si mesma e ainda que associada a algum paternalismo por parte de alguns intervenientes na política da época, bem como a sua forte ligação religiosa ao catolicismo patriarcal. Ainda assim, escolhida por homens e rodeada por muitos deles no Governo, é importante que tenha acontecido, porque a escolha de Maria de Lourdes para uma liderança deste tipo abriu um espaço para a participação das mulheres na vida política e laboral portuguesa e na Europa.

maria-de-lurdes-pintassilgoÉ verdade que ainda hoje nos encontramos longe dos desejados e ambicionados 50% de participação feminina na vida política e nos órgãos de decisão política dos países e do mundo e muito longe disso em papéis de destaque e de liderança. Mas foi um passo fundamental para caminharmos nesse sentido. Foi também, atrevo-me a dizer, importante a sua liderança no feminino junto das instituições do cristianismo e do catolicismo, onde Maria sempre esteve associada e com cargos já de presidência. Importante porque, também aqui desbravou um caminho fundamental de renovação das igrejas, tal como, dos movimentos e escolas de leigos, que participam ativamente da vida do catolicismo e onde as mulheres necessitam de ter esse espaço assegurado.

Claro está que, neste caso, sendo a Igreja católica fortemente patriarcal, a mulher por muito relevante que seja e é, vê a sua participação sempre num plano diferente e, ficará sempre um degrau abaixo do que deve em termos de decisão (nunca de participação na missão Serviço). Porém, isso é coisa que não sucede, no entanto, noutras igrejas cristãs, onde homens e mulheres em paridade partilham dos mesmos papéis eclesiais e pastorais, sem que o género seja impedimento para lugares não só de Serviço, inerentes a todas e todos os cristãos no mundo, mas também a lugares de decisão e de intervenção no seio das instituições e das suas escolhas internas e com reflexos importantes para o exterior, para a sociedade e para as políticas levadas à prática.

Foi, no entanto, uma afirmação de género importante que se tornou mais um passo no caminho que têm a fazer alguns movimentos católicos e as religiões patriarcais de uma forma geral. A afirmação de género faz parte da evolução dos tempos e do crescimento das sociedades humanas, não porque sejam mais capazes as mulheres, mas porque são igualmente capazes e necessárias à construção das sociedades e à evolução dos povos e das nações. Direitos iguais, deveres iguais! Uma luta sempre presente até aos 50% exigido num mundo mais justo, livre, solidário e fraterno.

Este é o legado que Maria de Lourdes também nos deixa, este orgulho de ter sido uma mulher a liderar um governo em plena crise política do país, até às eleições que nos colocam, definitivamente em democracia, longe dos tempos de ditadura, povo orgulhoso de ser livre e de participar da vida do país.

Foi escolhida por um grupo de pessoas justas e correctas, com visão política e do todo que era necessário para o país nesse momento, escolhida também por um grande Senhor e um militar da maior integridade e honestidade intelectual, o General Ramalho Eanes, líder sem mácula no seu percurso, de uma honestidade e sentido de pátria e humanismo que raramente vemos hoje em política, infelizmente.

pintassilgoMaria de Lourdes foi também uma grande Senhora, capaz e à altura da situação do país, com a humildade e espírito de serviço, que a levou a aceitar um governo de transição sem luta por lugares futuros, com aquele espírito humanista e de missão que sempre teve e que tão bem a caracteriza. Lutou também pela questão feminina, em coisas tão simples, mas tão importantes como a da linguagem, nada adaptada às mulheres na vida política e que ela própria fez questão de assinalar e denunciar, dando conta de como estávamos atrasados neste processo de igualdade entre pares, homens e mulheres. Dando conta e contribuindo para a tomada de consciência da necessidade da renovação linguística, da derradeira necessidade de adaptar o discurso ao género e à igualdade de género. O papel de Maria de Lourdes Pintasilgo foi crucial para a mudança que se começou então a fazer notar e que tarda em estar concluída, de forma satisfatória, mesmo nos dias de Hoje.

Maria de Lourdes Pintasilgo viu muitos dos seus opositores a não estarem sequer presentes na tomada de posse, como foi o caso dos partidos de direita que, ao contrário do que lhes era habitual, estiveram ausentes na cerimónia oficial da tomada de posse, em 1 de Agosto de 1979, mostrando para além da questão política e da divergência no seio do catolicismo, uma clara negação e falta de “poder de encaixe”, pelo facto de ser uma mulher a tomar posse e a liderar esse Governo.

O desagrado à direita foi absoluto, político é certo, mas muito também porque, o hábito de ter nas mulheres o papel secundário do alicerce ao trabalho na linha da frente do homem, era declarado e assente em fortes raízes culturais de índole sexista, às quais não podiam fugir.

Claro que sempre houve muitas e honrosas excepções, mesmo no setor mais à direita da época, mas nunca foram suficientemente importantes para conseguir mudar o paradigma e, de facto, nunca houve aceitação de uma mulher solteira, ativista e democrata, como líder de um Governo, por parte destes partidos. Os partidos e figuras à direita, com representação parlamentar, PPD-PSD, CDS e PPM, que formaram a AD – Aliança Democrática, precisamente em Julho de 1979, para fazer frente à maioria parlamentar de esquerda e ir a eleições seguidamente, nunca aceitaram Maria de Lourdes Pintasilgo à frente do V Governo, e tudo fizeram para a desprestigiar. Mais por ser mulher, provavelmente, do que por outra coisa qualquer. Mas não só, claro. Esta linha de comportamento e atitude política não está dissociada do machismo inerente à sociedade da época, mais árduo de ser ultrapassado nos setores mais conservadores e à direita, mas hoje já “em marcha”, claro está, ainda que vagarosamente…demasiado devagar diria eu.

“O Jornal” criticou muitas vezes e trouxe a público o que se ia dizendo de Maria de Lourdes, bem mais por ser mulher, do que pelas suas convicções políticas, o que é realmente de lamentar. Na sua 1º Página de 10 de Agosto, publicava-se uma caricatura, da autoria de António, em que se colocava o título de “Vasco Gonçalves de saias”, onde se percebe claramente a tentativa de ridicularizar e tornar absurda a figura da líder do V Governo, mais por ser mulher e estar ativamente envolvida na política, do que por ser apoiada pelas esquerdas, ou outra coisa qualquer. Pode ler-se claramente o ataque ao género, bem mais do que o ataque político. O título é retomado por Lucas Pires, pouco tempo depois, numa sua citação: “Portugal está numa fase de neogonçalvismo rococó, de saias e espartilhos” (In “O Jornal”, 27 de Julho, pp 17). O sexismo presente é notório.

“O Jornal” criticou frequentemente os ataques feitos a Maria de Lourdes pela via da intolerância e das palavras em tom jocoso…e, acrescente-se agora, de índole predominantemente sexista. Maria de Lourdes no entanto nunca vacilou, nem se deixou “espartilhar”. A sua inteligência e honestidade intelectual foram a sua verdadeira arma, a sua frontalidade e o seu espírito de missão e serviço. Foi uma mulher corajosa e atenta, inteligente e hábil.

Acerca da sua postura, Cáceres Monteiro escreveria em “O Jornal”, a 3 de Agosto de 1979, num elogio a Maria de Lourdes na forma como: “(…) “estilhaçava” numa conferência de Imprensa, com a sua autenticidade e pela forma corajosa e inteligente com que respondia às perguntas dos jornalistas as teorias laboriosamente urdidas pelos chamados “analistas políticos”, capaz de inverter habilmente a direcção das setas que lhe são dirigidas.(…)”
Maria de Lourdes teve este mérito, de abrir caminho à participação feminina na vida ativa quer da Política quer da religião cristã, concretamente no catolicismo e na escola de “leigos”. Tem muitos outros méritos certamente, e coisas menos positivas também provavelmente.

Para mim, acima de tudo, teve o mérito de contribuir para a mudança de atitudes, a mudança da forma como se olhavam as mulheres no geral. Uma mudança que não foi ali feita, mas ainda hoje se vai fazendo…abriu-se uma “fresta da porta”…

Maria de Lourdes será sempre uma grande Senhora da vida política portuguesa, com uma participação de relevo e também ativa no catolicismo e, acima de tudo, um ser humano de excelência com valores imensos de altruísmo e espírito de missão e dádiva. É um ícone muito importante na luta feminina e nas suas causas, abrindo caminho para a participação das mulheres em todas as decisões, em todas as Instituições políticas e religiosas. Num país onde o sexismo imperou anos e não foi dada igualdade de oportunidades às mulheres, nem sequer direito ao voto no Estado Novo, nem ao divórcio, numa larga maioria de casos, Maria de Lourdes foi uma líder carismática.

Maria de Lourdes Pintasilgo protagonizou a mudança de mentalidades, onde as “Marias” não têm de ser “obedientes” e oprimidas, silenciosas e discretas, sofredoras até, nem opressoras de “outras Marias”, o que também não raramente acontecia. As “Marias” podem afinal ser o que quiserem e estar onde entenderem, nas lutas, na linha da frente, na liderança.

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Hoje o partido onde curiosamente Lucas Pires era militante à época, é liderado por uma mulher. Há mulheres líderes noutros partidos à esquerda e algumas lideranças no feminino na Europa.
É isto que está em causa quando se escreve sobre Maria de Lourdes Pintasilgo, e “isto” faz toda a diferença. Ainda há muito por fazer pela igualdade de género, mas “o caminho faz-se caminhando”. Continuemos pois a caminhar!