Maria Luís Albuquerque: Fiel ou Infiel?

Não, este não é um artigo sobre o programa da TVI que, há uns anos atrás, chamava casais a testar a sua fidelidade no domínio das relações íntimas. É uma crónica sobre a atuação de Maria Luís Albuquerque, que se iniciará com duas premissas extraídas do campo filosófico.

Primeira premissa. Num conjunto de comentários ao trabalho de um antropólogo britânico, intitulado “Observações sobre «O Ramo Dourado» de Frazer”, o célebre filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein diz que a característica distintiva do humano é que para o mesmo “um fenómeno venha a ter significado”. Sob esta perspetiva, há assim, entre os humanos, um mundo de significado cuja análise não se subsume na estrita investigação acerca de cadeias causais no plano físico. Um exemplo concreto da diferença entre estes dois planos e da pertinência da sua abordagem reside no facto de que  uma pessoa a gritar elogios aos nossos ouvidos magoar-nos-á menos do que alguém a sussurrar insultos e humilhações, apesar de, em termos estritamente físicos, um grito causar uma impressão desagradável mais forte que um murmúrio. Fixemos, portanto, a primeira premissa desta crónica: 1. O significado que um fenómeno adquire para o humano não está preso na mera factualidade.

Segunda premissa. Na obra referida, Wittgenstein diz-nos ainda que se “poderia começar um livro sobre antropologia assim: quando se considera a vida e a conduta do homem sobre a terra é possível ver que além do que se pode denominar atividades animais, há também realizações que carregam um carácter totalmente específico e que se poderiam denominar acções rituais”, sublinhando, ainda, o cariz grupal das mesmas. Podemos, portanto, fixar a segunda premissa desta crónica: 2. Os significados extra-factuais que os fenómenos adquirem são atribuídos predominantemente de modo grupal através de processos ritualizados.

A liberdade da crítica enquanto ritual de significado. Felizmente, em democracia, um dos fenómenos aos quais os grupos gostam de atribuir significado é precisamente a vida política das instituições e dos seus líderes. E, mesmo quando esta atribuição de significados se prende com detalhes da vida dos dirigentes políticos, é bom não esquecer que uma democracia da cuscovilhice é bem melhor do que uma ditadura do absoluto direito à honra. Essa atribuição de significados ao que os líderes políticos dizem e fazem ultrapassa o raciocínio jurídico, e ainda bem que assim é, pois o domínio da normatividade ética é mais largo e mais dúbio que o domínio da normatividade jurídica, pois esta factualiza-se em códigos escritos e a primeira não. Dentro dos limites da não violência, o julgamento da opinião pública dos seus políticos eleitos não é um entrave à democracia – é uma das suas conquistas. Os rituais através dos quais tais significados são atribuídos – a conversa de café, os comentários em fórums online, os telefonemas para os programas participativos da televisão – devem, pois, ser preservados. Quando o carácter de um político é julgado por ações concretas, é não perceber a natureza da liberdade de opinião descartar à partida as críticas enquanto ataques ofensivos. Pelo contrário, em democracia, sendo a crítica geneticamente legítima na sua liberdade valorativa desde que não imputadora de ações que efetivamente não ocorreram, cabe ao criticado desmontar a crítica argumentativamente. Esse é um dos jogos de linguagem da democracia.

Os factos. Vamos a factos: Maria Luís Albuquerque foi ministra das finanças e executou um programa de austeridade que diminuiu o rendimento disponível das famílias; Maria Luís Albuquerque foi eleita deputada, cargo através do qual participará em decisões de política económica e financeira; Maria Luís Albuquerque vai colaborar profissionalmente com uma entidade que se dedica à compra de pacotes de dívida a outras entidades financeiras e à sua cobrança junto de famílias e empresas.

O significado. Vistos os factos, os significados atribuídos são, obviamente, discutíveis. Mas, tal como é provável que Maria Luís Albuquerque não esteja a violar nenhuma lei no plano da factualidade jurídica, é absolutamente legítimo considerar que a sua colaboração profissional representa uma traição ao povo português. Estar do lado de quem diminui o rendimento disponível das famílias e empresas e, depois, do lado de quem cobra dívidas que em grande parte se devem a essa diminuição do rendimento é, a meu ver, uma traição. Maria Luís Albuquerque, infiel. Uma infidelidade que lhe vai render 70 000 € por ano. De especulador filosófico para especuladora financeira, permita-me dizer-lhe, cara ex-ministra, para não se queixar das metafóricas pedras que lhe atiram, pois os telhados de vidro foi a deputada que os construiu ao aceitar ser ajudante de um cobrador do fraque institucional.