Mas que país é este? Portugal não é com certeza…

Somos influenciados por tudo o que nos rodeia, nomeadamente pelo local onde nascemos e crescemos. O que quer dizer que Portugal teve (e tem) um papel importantíssimo na nossa formação a todos os níveis. Mas por nos ter acolhido e formado não quer dizer que concordemos com tudo o que nele acontece. Esta é uma crónica de revolta para com um país que parece não ter amor-próprio. Estas são interrogações pessoais mas acredito que também nacionais, tamanha é a sua importância. Aqui reflecte-se sobre o presente e o futuro do país que é um pouco de todos nós.

O cidadão comum acorda demasiado cedo para ir para um emprego que odeia e onde é mal pago. Toma um duche rápido (afinal de contas a água está cara e o dinheiro para a pagar é cada vez menos), se possível gastando pouco gel de banho e pouco shampoo (que mesmo sendo de “marca branca” é caro demais para as suas possibilidades), e veste-se a rigor para o trabalho. A rigor que é como quem diz: com praticamente a mesma roupa desde há três anos, altura em que deixou de a poder comprar noutra altura que não os saldos. O pequeno-almoço resume-se a uma peça de fruta (proveniente da pequena horta do pai que, teimosamente, continua a mantê-la) e um copo de leite frio. Não tivesse o microondas sido vendido (para ajudar a pagar uma dívida às finanças) e o mesmo copo de leite poderia ser bebido quente. Mas sendo assim frio terá de chegar.  Feitas as despedidas da mulher e dos filhos é tempo de se pôr ao caminho se quer chegar a horas.

O caminho até ao emprego é feito através dos transportes públicos. Sim, porque o carro apenas é opção em último caso tal é o preço a que é vendido o combustível. E apesar do preço do passe (e das greves e atrasos) continua a ser a melhor opção na comparação eficácia – preço. A viagem é feita com os headphones na cabeça e o MP3 no colo escutando êxitos de sempre ou uma qualquer rádio nacional. Um dos pequenos “luxos” de que se pode gabar. Pelo menos por enquanto. Tem escapado, mas da próxima vez poderá ser o sacrificado. Afinal de contas depois do microondas, da televisão do quarto e daquela roupa antiga, que já não lhe servia, pouco mais há para vender.

Na hora de almoço a marmita é a protagonista. Tempos houve em que todos iam almoçar a casa (afinal de contas duas horas de almoço eram suficientes para percorrer o, relativamente curto, trajecto), mas quando o dinheiro escasseia poupa-se onde se pode, incluindo a alimentação. Agora todos se reúnem em redor das marmitas discutindo o almoço uns dos outros. E como para almoçar no local de trabalho basta uma hora, ainda conseguem trabalhar a segunda hora, a que têm direito, ganhando assim uns cêntimos que no final do mês podem fazer toda a diferença.

Quando chega o final do dia até parece mentira de tanto que custaram a passar as horas que esteve a trabalhar. É o que acontece quando se faz “o que aparece” e não “o que se ama”. Chegado a casa é tempo de ir buscar os filhos há escola. A esposa deixou-os nas aulas de manhã e ele está incumbido de os ir buscar no final da tarde. Sim, porque sendo ela professora tem assegurada a hora de entrada mas nunca a hora de saída.

Os filhos estão novamente tristes. A aulas correram bem, contudo não compreendem porque tiveram de abandonar as actividades extracurriculares, que todos frequentavam, e nas quais eram excelentes. O Rui era campeão regional de Badminton. A Raquel campeã distrital de Judo. Se eram tão bons porque tiveram de sair? Explicar a crise económica a crianças de tenra idade é mais difícil do que parece.

A esposa teve a sorte de ser colocada bastante perto de casa. Estava a apenas escassos quilómetros de distância. Contudo em anos anteriores não teve tanta sorte. Já tinha sido colocada a vinte, cinquenta e cem quilómetros de casa. Sabia o que era levantar-se de madrugada e chegar a casa novamente de madrugada. Quase que abandonando a sua família para a poder sustentar. Incrível como tudo isto é irónico. Só estando “afastada” e distante da sua família consegue ganhar o dinheiro suficiente para que possam todos sobreviver.

Acabou-se também o explicador para ambos os filhos (passaram a solicitar a ajuda dos avós e tios das crianças). A televisão por cabo e o telefone fixo há muito que eram uma miragem. A internet embora fosse um bem essencial estava acima das possibilidades como tal havia que aproveitar a que existe de forma gratuita na escola e nos espaços públicos. Difícil, mas não impossível. O computador é antigo. O telemóvel também.

Smarthphones e tablets são desejos inconcebíveis. Idas a concertos e espectáculos ao vivo apenas se forem gratuitos (e de preferência perto de casa). Comprar livros apenas se forem obrigatórios para a escola dos filhos. Ir ao cinema então era mesmo impensável.

Se o salário se mantiver nos quinhentos euros mensais rapidamente vai tornar-se impossível de sustentar a família. E entre manterem-se no país que os viu nascer, e que amam profundamente, como sem-abrigo (ou dependentes de familiares e amigos), e emigrarem para um qualquer país estável, em busca de um amanhã melhor, é praticamente certo que a balança penderá para a segunda hipótese.

Hoje sobreviveram. Mas amanhã nenhum deles sabe como será o seu dia. Podem até ser despedidos, hoje em dia tudo é possível. E se necessário for terão de virar as costas a tudo e todos e embarcar, sem destino, rumo a um futuro mais risonho. Preferem fazer incontáveis sacrifícios a deixar para trás Portugal, mas tudo tem o seu limite. Na televisão os políticos continuam a sorrir. Pudera, não são eles os sacrificados. Qualquer dia cansam-se de tanto sofrer e fazem a vontade ao Primeiro-Ministro, emigrando para um país que esteja interessado em receber trabalhadores sérios e honestos. Esse dia pode ser amanhã.

Esta não é a minha própria família, nem alguma das que me rodeia. Esta rotina é fictícia. Contudo o que não falta por este país são famílias como esta. Não têm nome, nem apelido, porque ninguém está imune a esta realidade. Não têm idade, género, habilitações, raças ou etnias. Não têm região ou distrito porque infelizmente acontece em todo o país.

Mas têm sentimentos. Como revolta, raiva e indignação para com aqueles que nos conduziram a esta situação. Ou ainda amor e paixão para com o país que os viu nascer. País esse que parece já não os amar.

Tal como a família do exemplo, muitos milhares sobreviveram hoje. Amanhã logo se vê. Agora vivem um dia de cada vez.

Boa semana.
Boas leituras.