A meio da época de saldos, a compra de uns sapatos que foi um autêntico par de botas

A poucos dias de ter sido há um mês que começou oficialmente a época de saldos, só hoje entrei numa loja para comprar os tais sapatos que há tanto tempo tanta falta me fazem.

Vira-os na montra, de olhos postos em mim, aconchegados entre um par de sapatos de salto raso de senhora e umas botas de cano alto que, muito mais do que eu recorrendo aos termos do meu paupérrimo Português, seriam capazes de dizer a respeito da personalidade da mulher que as calçasse. Devia vestir-se com elegância e ter o porte de uma grande dama, o qual era perfeitamente compatível com uma mulher que fosse dotada de uma altura acima da média, já que ao tamanho do pé corresponderia certamente uma pessoa que não mediria menos de um metro e oitenta e cinco. Além disso, ela devia ser magra, pois se tivesse peso a mais, menos certo seria que se conseguisse equilibrar em cima de uns saltos pontiagudos, que eram como as antenas colocadas no cimo dos arranha-céus nova-iorquinos mas vistos ao contrário.

Se fossem pretos os sapatos de biqueira que eu pretendia comprar, talvez nesta altura já só os encontrasse num tamanho muito grande ou num que apenas servisse a uma mulher que medisse menos vinte centímetros do que aquela, donde resultaria, no meu caso ficar com os dedos tão apertados que mal conseguiria andar, e no dela, vir a revelar-se ter afinal tão mau gosto como uma mulher a quem acha que fica bem usar sapatos de pompons ao estilo masculino.

Tinham no expositor unicamente o sapato do pé direito, quase a cair sobre um suporte de acrílico que parecia ter sido feito à medida do pé esquerdo e que é, na generalidade das pessoas que eu conheço, ligeiramente mais pequeno. Este, porém, era comprido e embora esperasse sentir-me a caminhar nas nuvens quando o calçasse, era em bico que eles acabavam à frente como a proa de um navio. E oxalá a sola fosse resistente, mais do que a dos meus mais recentes que começaram a romper-se ao fim de menos de um ano de usá-los todos os dias como se não tivesse outros e na junção da sola com a pele, que envolvia o pé com a suavidade de uma pluma, havia um friso, como o de um automóvel antigo que admirávamos melhor quando estava em movimento.

Lembro-me de um par de sapatos que comprei com o dinheiro do meu primeiro ordenado. Eram iguais a estes mas, em vez dos atacadores tinham um elástico forte que os prendia ao peito do pé, e no lugar do friso não havia nada, como um carro ao qual alguém já o tivesse roubado. Foi na época em que o mais parecido que havia lá na rua com o carro metalizado da minha vizinha boazona do 5º esquerdo, eram os meus sapatos de verniz pretos que quando estavam polidos até no escuro brilhavam.

Eu próprio, se já nessa altura conduzisse, teria um igual de estofos de pele e o rádio sempre a bombar, não porque pretendesse dar nas vistas da mesma forma do que ela, mas por mantê-lo sempre tão limpo, por dentro e por fora, que por força de estar tão asseado destoaria dos carros dos vizinhos que estavam sempre sujos. E fosse qual fosse a cor de origem, pintá-lo-ia de azul, que passou a ser para mim a nova cor da esperança, depois de quase ter perdido toda a que tinha, num futuro melhor, quando não consegui arranjar, ao cabo de seis meses de busca intensa, um emprego melhor do que aquele, de 3º escriturário numa firma que vendia por atacado, cablagem elétrica e diversos tipos de aparelhagem a instaladores que sempre que se enganavam diziam que a culpa era do material.

Tinha a ventagem de receber sempre a tempo e horas, mas pensando bem não era tão bem pago que justificasse acomodar-me ao lugar e não querer aprender outra profissão. Pelo que encetei alguns contactos e fui começando a falar com os eletricistas, ambicionando saber o que faziam e sobretudo o que ganhavam. Aos mais queixosos, ouvia dizer que o setor da construção civil em Portugal estava em crise e que a profissão de eletricista tinha um futuro ainda menos promissor do que a carreira de um político que num discurso de Natal transmitido pelos quatro canais viesse dizer que a economia caseira estava em franca recuperação. A outros, ouvia reclamarem de que o ofício era tão mal pago que se queria ganhar algum dinheiro para começo de vida devia cobrar dos amigos pelos mais pequenos fretes, menos o de ficar a ouvir as histórias que alguns deles, sem terem vontade de ir para casa, se sentavam ao balcão a contar até ao fecho da loja.

Em pouco tempo, percebi que para ter sucesso naquela profissão precisava em primeiro lugar de uma pequena camioneta ou no mínimo uma carrinha de caixa aberta, como tinham os clientes que tão grandes quantidades de material para as suas obras, que do que viriam a precisar era de um carro veloz para fugir à ira do meu patrão se pensassem em não pagar o que lhe deviam ao final do mês. Aos que cumpriam regularmente os seus compromissos e pagavam, ele em vez de prometer dar uma tareia, dava descontos de pronto-pagamento que, no entanto, tanto podiam servir para fidelizar os clientes que os achavam bons, como para perder aqueles que, no seu entender, nas lojas da concorrência encontravam quem por si fizesse mais e melhor.

Creio que de um modo geral, é o que se passa no comércio, em que os lojistas procuram cativar os clientes oferecendo-lhes melhores e mais variados produtos aos preços mais competitivos. Das lojas de vestuário, às das de eletrodomésticos, passando pelas livrarias e até na sapataria diante da porta da qual me encontrava, embora não vislumbrasse na montra um par de sapatos que na mesma proporção de qualidade-preço pudessem concorrer com aqueles que me fizeram palpitar de amor à primeira vista.

Mas não pensem que eu era o típico pinga-amor, que facilmente se apaixonava. Esse era o meu amigo Chico Maravilhas que podia usar essa alcunha, porque trocava de namorada como quem mudava de camisa se aquela com quem ele andasse fosse da opinião de que devia usar outra que tivesse guardado no armário.

Era um sujeito pimpão que não saía de casa sem estar bem vestido e perfumado, e sobretudo na rua conservava o ar empertigado de um fox terrier de pelo encaracolado metido num compartimento entre exemplares de outras raças. Sempre muito bem penteado, aprumava o bigode todas as manhãs e sendo dotado do faro de um perdigueiro, detetava ao longe a presença de mulheres que perseguia ligeiro como se fosse um galgo. A nenhum aspeto do seu visual, o Chico Maravilhas dava tanta atenção como aos sapatos que usava, os quais selecionava de acordo com a roupa que vestisse. Os de vela combinavam com o casual style das Sextas-feiras; as botas, destinadas a manterem-lhe os pés quentes e protegidos da chuva como nenhuns outros, só com gabardina e chapéu-de-chuva e ténis unicamente ao fim-de-semana quando saía para dar uma caminhada. Cuidava do que calçava com tanto aprumo, que era como se de um homem que se dizia tão bonito, as mulheres não tivessem outro sítio para onde olhar, a não ser … os pés.

Eu chocava-o amiúde com a minha a aparência pouco cuidada, representando a antítese do homem vaidoso que ele era. Era quando, por estar diversos dias sem fazer a barba, às pessoas passava pela cabeça que não tomava banho há mais de um mês, habituadas que estavam a ver-me, quando saía de casa à pressa, com as camisolas vestidas no avesso.

Gostaria que estivesse comigo, para ver como reagiria, quando desisti de comprar os sapatos nesse dia e virei costas à sapataria e à rapariga que lá dentro, sorrindo armada em anunciante de pasta dentífrica, se despedia de uma cliente carregada de sacos que só teria a sorte de rever se a conseguisse convencer a voltar para comprar uns sapatos para o marido.

Resolvi comprá-los noutro dia, porque me ocorreu ter esquecido em casa a carteira com o dinheiro e não me sentia à vontade para entrar e lhe pedir que mos fiasse … mas mesmo que me sentisse não o faria. É que me agradava mesmo a ideia de tornar a vê-la. Achei-a tão bonita que de bom grado voltaria à loja para comprar aqueles sapatos e todas as vezes que fosse necessário.