A memória do incêndio

Há muitos anos atrás, era eu criança, os verões eram passados em casa dos meus avós paternos, na aldeia de Burgau, concelho de Vila do Bispo. A casa era no cimo de um cerro (sinónimo de colina ou encosta) e tinha um anexo de madeira, usado como arrecadação, num socalco na encosta, a um nível mais baixo que a casa. Uma rua bastante estreita passava entre a casa e esse anexo. Como não passavam carros nessa rua (só os vizinhos nas suas motorizadas e de tempos a tempos) era normal eu brincar naquela rua em frente à casa dos meus avós.

Lembro-me de, naquela manhã, ter visto fumo lá no fundo da encosta. Honestamente hoje não me lembro se comentei com a minha avó ou não. Mas o que me lembro bem – e creio que nunca sairá da minha memória – é estar, mais tarde, dentro de casa e de repente tudo ficou mais escuro e um espesso fumo cinza batia nas janelas.

Não sei que idade tinha, mas tendo em conta que aos 10 anos e alguns meses mudamos de aldeia, tinha seguramente menos de 10 anos. Lembro-me de ter entrado em pânico, porque só me consegui lembrar que a minha mãe estava a trabalhar ali perto e comecei a correr de encontro a ela, sem pensar na aflição da minha avó, que já berrava por ajuda, ao não me encontrar. A caminho lembro-me de ouvir umas pessoas que ao longe assistiam dizer “aquela barraca [o tal anexo] vai ao ar”.

Mas o ali perto não era assim tão perto (eram quase 2 km) e eu só me lembro de ter corrido, corrido, corrido sem parar até que encontrei a minha mãe e contei-lhe o que estava a passar. A minha mãe dizia-me para ter calma que de certeza alguém já tinha ajudado.

Quando voltámos, soubemos que um vizinho nosso (que curiosamente até nem morava perto da minha avó) conseguiu suster o fogo com uma mangueira enquanto os bombeiros chegaram para o apagar. A “barraca” continuava lá, a vegetação é que era agora, na sua maioria, cinzas. Ficou o susto que nunca mais irei esquecer.

E a certeza que se aquele pequeno fumo – “onde há fumo, há fogo” – ao fundo da encosta tivesse sido visto por alguém que tivesse apagado imediatamente aquela ignição ou por alguém consciente do perigo que representava e que avisasse os adultos, tudo aquilo teria sido evitado.

Moral da história: há momentos traumáticos que não se apagam e a educação e formação das pessoas para lidar com os focos de incêndio é imprescindível. Ninguém é obrigado a ter formação de bombeiro. Mas pode ter bases para avaliar se é algo com que possa lidar (quando são pequenas ignições) ou se deve aguardar pelos soldados da paz. Naquele caso por que passei, fez toda a diferença o meu vizinho (não bombeiro) ter voluntariamente ajudado. Memórias que ficam para a vida.

Crónica de João Cerveira
Este autor escreve em português, logo não adoptou o novo (des)acordo ortográfico de 1990