A memória é uma rua onde podemos viver para sempre. E o Rui Veloso ainda há-de cantar para nós.

Amigos. Havia-os aos magotes. Um em cada esquina. Um em cada campo de terra batida. Um em cada rua. Que tinha paralelos. E lama quando chovia. E buracos. E roupa estendida. E mercearias que vendiam cromos do Futre.

Amigos. Uma seita. Das boas. Uma fila indiana de meninos à espera de vez. Para levar meia-dúzia de reguadas. Meninos que se aguentavam. E que eram cúmplices. E que olhavam uns para os outros com código morse nos olhos. Que é onde está tudo. Sobretudo o coração.

Tenho poucos amigos. Um ou outro. E assim é que está bem.

Lá atrás, tinha muitos. E também estava bem. Éramos anjos da guarda uns dos outros. Sem sabermos! O golo era pretexto. Para nos abraçarmos. Para nos rirmos. Quem marcava, corria muito. Fugia por lá fora. Mas com vontade de ser apanhado. Braços a apontar para o céu. Boca aberta. Cometa nas pernas. Tambor no coração. Atrás dele, para o abraçar, os outros. De sirene ligada. De boca aberta, também. Uns magrinhos. Outros gordinhos. Uns pequenos. Outros grandes. Tudo ao molhe e fé em Deus. Que era quem tinha marcado o golo.

A rua ensinava a jogar à vida. Que só ficava de pernas para o ar quando fazíamos o pino. E passava logo.

Os amigos fogem. Para longe. Mesmo quando ficam perto. É a vida! E na minha, estão todos cá. Até os que não estão. Lembro-me de todos. Com a cara que tinham. Com a roupa que tinham. Com o cheiro que tinham. A memória é uma rua onde podemos viver para sempre. E onde os amigos são como eram. Lá, ainda roubamos tangerinas, empoleirados uns nos outros. E tocamos às campainhas. E fugimos. A rir. Lá, ainda estão os sonhos. Aqueles que falhámos. Que nos escorreram pelos dedos. Nesse sítio, ainda é possível ser o Maradona. E marcar de pontapé de bicicleta no último segundo. E ter vinte mil gargantas a gritar o nosso nome na Superior Sul.

Lá, ainda há holofotes.

A memória, quando é boa, alumia o que ainda não existe. Abre caminho. Olhar para trás é bom. A vida também é lá. Não tem de ser sempre para a frente. Gosto de visitar a margem que já fui. Para construir a margem que um dia hei-de ser.

Rebobino a minha história. Vou ao sítio onde amei pela primeira vez. Fecho os olhos. Fico corado. Sinto, outra vez, o exército de cavalos que me corria no peito. Ouço-o. Faz tanto barulho!
Olho para baixo. Vejo-me de All Star.  Com os cordões desapertados. Num banco da escola. Onde estava escrito “Mena do 9º D, és muito bonita. Quando ganhar coragem digo-te quem sou. Ass: Jorge Filipe. 10º C”.
Um beijo. E sou Deus enquanto dura. Um abraço. E descubro um arquipélago com muito sol, de onde nunca vou querer sair. Um adeus. E sou barquinho de pescador a dançar num mar cheio de relâmpagos.

Abro os olhos.

O banco já não existe. A escola já não é a minha. Já só existe na minha rua. Como o primeiro amor. Que é bonito. Que é o início do mundo quando começa. E o fim do mundo quando acaba. E é assim que tem de ser. Quando se gosta muito, sofre-se muito. Custa. Mas é assim. E assim é que está bem.
O primeiro amor não é o melhor. Se fosse, ficávamos todos por lá. Mas mostra que a vida ilumina. E anoitece. E que depois do Inverno vem a Primavera.

Sigo. Com saudades. Das boas.

Vejo-me num comboio. Olho para a janela e lá estou eu. Sou Montanha Russa. Ora desço, ora subo. Lançam-me numa fisga. Voo. Às vezes nem sei de que terra sou. Ou em que terra estou. Mas a terra é o menos importante quando se encontra alguma coisa pela qual se está disposto a morrer.

Sou nómada. Ando com a casa às costas. O tesouro não é de cá. É de lá, onde dizem que a luz é mais branca. Lá, onde o Tejo serve de pista aos cacilheiros e onde os guarda-freios nos levam, de eléctrico, a ver as estrelas. Lá, onde ela está, é sempre sexta-feira. Mesmo quando é segunda!
Conheci-a tarde. Ou conheci-a quando teve de ser. Não fomos adolescentes juntos. Não partilhámos a Revolução dos Cravos um do outro! Não me viu de espinhas na ponta do nariz. Não me viu de cabelo grande nem de calças vinte e cinco números acima do número. Nunca viu a minha barba à Che Guevara Não ouviu, comigo, os discos do Zeca. Não dançámos, no roço, o Prometido é devido, do Veloso, no baile de finalistas.
Apanhei-a a meio. Travei a fundo mal a vi. Tinha o polegar estendido. Tinha fantasmas nos olhos verdes. E eu nos castanhos. Dei-lhe boleia. Aliás, demo-nos boleia um ao outro. Mostrou-me, sem querer, a grandeza que há em ser simples.

Este sou eu. Fragmentado. A olhar para trás. Porque a memória é uma rua onde podemos viver para sempre.

Este sou eu. Fragmentado. A olhar para a frente. E para dentro.

Hei-de desaguar num sítio com baile de finalistas. Com ela. E vamos dançar o Prometido é devido. No roço.

Prometo.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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