Memórias – Carta ao meu Pai

  As minhas memórias são como a imagem assim transparece… antigas, um pouco desbotadas mas sempre no meu coração.

  Comecei a escrever com 14 anos, pouco depois do meu pai falecer. Achava que vinha de outro planeta, tinha tendência a “coitadificar-me” e a achar que era a pessoa mais incompreendida do mundo… coisas de adolescente. Porém, foi na escrita que encontrei o meu porto seguro. Aquelas folhas e guardanapos entendiam-me como ninguém. Nelas conseguia transpor a minha dor… os meus dramas de adolescente.

  Mas não pensem os meus estimados leitores que venho aqui à procura de pena! Tudo isto faz parte do processo de cura. Aquilo por que passei faz de mim o que sou hoje e tenho o maior orgulho das minhas dores, são elas que mais me têm ensinado! Poderão alguns pensar porque partilho algo tão sensível, que expõe as minhas fragilidades… não são fragilidades, faz parte da minha vida e centenas de pessoas terão experienciado situações semelhantes e até piores e tenho-lhes o maior respeito.

  Nesta época, ressoam no ar palavras como família, amor, felicidade e por aí. Mas sei também que, como eu, existem muitas pessoas que sentem ainda de forma mais intensa esta época, precisamente pela saudade daqueles que já não se encontram entre nós. A essas pessoas, que como eu, sentem diariamente a falta de alguém que amam incondicionalmente, dedico a crónica desta semana.

  Hoje partilho algo que guardo numa das muitas caixas de cartão onde vivem as minhas memórias em papel, escrito há 20 anos atrás.

  Ainda hoje, após 3 anos do seu desaparecimento, quando estou só, recordo entre lágrimas de saudade e com fotografias apertadas nas mãos o pai que perdi.

  Aquele homem com um sorriso bonito e sincero, uma expressão de felicidade na face, o seu olhar honesto de quem ama. Recordo sempre os bons momentos daquele pai que sempre me apoiou e sempre esteve ao meu lado em todas as ocasiões.

  Sempre que me recordo dele vêm-me à cabeça os horríveis momentos passados e mesmo não querendo lembro-me de tudo o que se passou num Domingo, dia 12 de Julho de 1992… acho que nunca esquecerei.

  Em Lagos, o nosso primeiro dia de férias… Fomos para a praia, o meu pai estava estranho mas não liguei. Levantou-se da toalha, pegando nos óculos de mergulho e barbatanas e dirigiu-se ao mar para mergulhar. Passado um tempo voltou, sentou-se na areia à beira-mar, pousou os óculos e barbatanas e voltou ao mar… entrei também. Por estranho que pareça, em todo o tempo que lá estive, olhei para todo o meu redor menos para o local onde o meu pai estava. Saí da água e olhei em frente e via a minha mãe e o meu primo dirigindo-se para a minha direita, olhei e vi uma multidão imensa em torno de algo que me era impossível ver e dirigi-me à minha mãe perguntando o que se passava e ela pediu-me para eu ir para a toalha mas fui atrás dela e foi aí que vi o meu pai, no centro daquela multidão, deitado numa cadeira de praia, comecei a andar mais depressa dirigindo-me para o local pensando no raspanete que lhe ia dar quando ele se recompusesse.

  De caminho, estavam, sentadas nas toalhas, duas mulheres, daquelas que só sabem falar dos outros dizendo estas palavras: “Olha-se para ele e vê-se logo que está morto”. Olhei para o meu pai, não se mexia e tinha uma cor que não era a que eu estava habituada a ver. Atirei-me para a areia e ajoelhando-me, chorei e gritei “Não!” Queria acordar daquele pesadelo, não podia estar a acontecer justamente com o meu pai. Levantei-me e fui a correr para o local mas antes de lá chegar levaram o meu pai para o hospital. A minha mãe abraçou-me e perguntei-lhe o que se passava e ela disse-me que não sabia, só sabia que alguém tinha visto o meu pai a boiar durante muito tempo e foram à água tirá-lo. Fomos a casa e quando chegamos disseram que o meu tio tinha telefonado a dizer que estava tudo bem.

  Corremos para o hospital e esperámos, esperámos, esperámos… a porta da sala das urgências abriu-se e o médico chamou a minha mãe e eu a ensaiar o raspanete. Após 5 minutos a minha mãe sai da sala chorando e abraça-me. O que eu menos esperava acabara de suceder, o coração não reagiu, nada reagiu, o meu pai morrera. Abracei a minha mãe com muita força e pensei que nunca mais ia ver o meu pai, não me despedi, não disse nada, o que ia ser de nós, como é que o meu pai tinha tido a coragem de nos abandonar assim, sem dizer nada.

  Nos dias do funeral e do velório não saí de casa, não queria ver um corpo conhecido com falta de vida, não queria, não quis e não quero e nunca meterei na cabeça que o meu pai morreu, simplesmente, desapareceu.

  Hoje, com 17 anos, sinto cada vez mais a falta do meu pai, de alguém que me abrace e chore comigo nos meus piores momentos.

Pai:

 Deixaste-me sem avisar, agora é tarde demais para dizer que te amo mais que tudo, o quanto preciso de ti mas nada posso fazer, sinto falta do teu sorriso, das tuas maluquices e boa disposição. Perdi quem tanto amava e não pude fazer nada. Onde quer que estejas, sei que me vês, me ouves, me proteges, me amas, mas o que eu quero já não me podes dar e podia ter-te dado antes mas não sabia que me ias deixar tão cedo. Quero ouvir-te, abraçar-te com força, agarrar a tua mão, dizer o quanto te amo, ouvir a tua voz, sentir-te perto, perguntar-te porque nos deixaste?  Porque me abandonaste, dizias que eu era a tua vida, a coisa mais preciosa, o que mais amavas. Nem me despedi de ti, pai! Adeus não é a palavra certa, hei de te encontrar.

Amo-te muito!!

concurso

  Há mais de 20 anos que te ganho diariamente, acordo sempre antes de ti.

  Ainda hoje me revejo naquela caminhada na areia em direção à multidão. Ainda hoje sinto a areia nos joelhos. Ainda hoje olho o mar e, por vezes, não consigo entrar.

  Hoje sei que nunca é tarde para dizer que te amo. Visitas-me enquanto durmo e conversamos enquanto sonho. Segues-me diariamente, protegendo-me e quando canto, sei que me ouves. Um dia, teremos a eternidade para repor o que se perdeu.