BEP/PATRICK GHERDOUSSI/LA PROVENCE Illustration sur la prostitution

Memórias de uma puta triste

Chamavam-lhe puta fina.

Por debaixo da saia curta, que envergava como uma farda num local de trabalho, uma cinta de ligas escarlate realçava-lhe a curvatura da perna a que se gabava de nenhum ficar indiferente, por maior que fosse o desejo de acreditar que era efémero o prazer na companhia de uma mulher vistosa como ela, daquelas com quem a maioria quer que o tempo passe devagar.

Apesar de parecer mais jovem, tinham passado por ela mais dias, meses e anos do que supostamente acreditaria quem a conhecia há menos tempo.

Começavam a desenhar-se-lhe no mapa do rosto, pequenas rugas que eram como as linhas retas que uniam os lugares que ao longo da vida tinha percorrido. Sinais indeléveis da passagem dos anos, aos poucos a tornarem-se tão indisfarçáveis como as veias dilatadas nas têmporas de um animal em pleno esforço.

Não estava em tão boa forma que, nas putas mais novas, pudesse despertar um sentimento de inveja. Os seios opulentos a transbordarem do soutien de tamanho visivelmente inferior ao que devia usar, pareciam nádegas, embora às bimbas do cú não pudesse chamar-se-lhes outra coisa, porque estava à vista o que eram separadas pelo fio dental que alternava com cuecas, consoante as saias que com que saía à rua.

A caminho dos quarenta e oito, caminhava lentamente na direção da idade onde quem chega adquire a consciência de que já não tem a vida inteira pela frente e desata a fazer o que lhe dá na gana, mas gostaria de ter aprendido aos vinte, que teria valido a pena investir na educação e ter entrado num curso que lhe desse uma licenciatura. E aos trinta, que ainda teria valido a pena começar a estudar, para recuperar mais de uma década de atraso, sem chegar dali a dois anos, aos cinquenta, a não conseguir imaginar um dia em que, para colocar comida na mesa, não tenha de pôr o corpo à venda.

Andava no ganho há tempo bastante para ter tido meia-dúzia chulos que, em nome da proteção que não davam, só a faziam sentir-se verdadeiramente segura quando estavam o mais longe possível dela.

Por alguns deles, acabou sendo espancada variadíssimas vezes e a jorrar da boca o sangue de uma veia atingida por alguns murros que lhe tinham dado no peito ou nas costas. Na maior parte das vezes, eram insultos tão graves que deixavam-na em estado de ter preferido, em vez de um murro, ter levado um par de pontapés que a levassem de urgência ao hospital onde, enquanto estivesse internada, a única forma que teriam de agredi-la, seria dando-lhe para comer favas a todas as refeições.

Numa ocasião, ponderou alterar radicalmente o estilo de vida. Tinha sido suturada com pontos, a uma ferida no lábio decorrente de uma pancada na cabeça, a qual, nem que tivesse sido dada com o dobro da força mais acima, a fariam ter uma amnésia capaz de fazê-la esquecer todos os perigos por que tinha passado.

Partiu de um sujeito magro, dos seus quarenta e cinco anos, de tão má relação com as outras pessoas que, dali a uns anos, da sua passagem por este mundo, certamente ninguém se lembraria ao ponto de relatar alguma obra boa que tivesse feito.

Tinha a pele rugosa, mãos fortes como tenazes e os modos abrutalhados de um torturador da PIDE que de bom-grado, recorrendo a uma dessas ferramentas, facilmente arrancaria as unhas de um suspeito só para arrancar-lhe uma confissão.

Primeiro, quis vê-la despida. Deitada sobre a colcha da cama, antes de, por seu lado, ele próprio arrancar a roupa, pondo-se tão à-vontade, como se não fosse aquela a primeira vez em que se punha nu diante dela. Seguidamente, pendurou a camisa num armário, dobrou cuidadosamente as calças e guardou-as com as cuecas e os sapatos no interior de um armário, como se em lugar de querer ficar uma hora em sua companhia, desejasse passar a noite inteira naquela pensão de quinta categoria e no dia seguinte não quisesse regressar a casa todo amarrotado.

Ela ainda barafustou. Quando viu o que ele estava a preparar, que ele não devia demorar-se porque o companheiro, na ânsia de encontra-la, bateria a todas as portas possíveis e imaginárias e sabe-se lá o que seria capaz de fazer-lhe quando o encontrasse.

Depois vendo que não resultava, mudou de estratégia e quis mais dinheiro. Exigiu que ele lho entregasse o quanto antes ou, para realizar todas as fantasias que ele agora lhe pedia, arriscar-se-ia a ficar trancada naquele quarto bolorento bastante mais tempo do que estava a pensar.

Foi quando, para mal dos seus pecados, sentiu-o aproximar-se ameaçadoramente, levantando a mão com que lhe desferiu uma bofetada que a fez sentir-se envergonhada, não da sua humilde condição de mulher, mas do facto de quase sempre lutando contra os mais fortes, os fracos não estarem em condições de lhes responderem na mesma moeda e poderem bater-lhes com idêntico vigor com que foram agredidos.

Razão, pensou, tinha quem um certo dia a desaconselhava de prosseguir na ideia de andar em más companhias, embora sem poder prever que, aos vinte e quatro anos, quando se começou a prostituir, já ela não mantinha qualquer espécie de relacionamento com os amigos que na adolescência podiam tê-la influenciado negativamente.

Mais tarde, engravidou de pai incógnito, deu à luz e tornou-se mãe. E foi por intermédio do filho que os seus sonhos de novo ganharam forma, renovando-se-lhe a esperança no sentido de voltar a acreditar que é tal como dizia o poeta e é verdade que “o sonho comanda a vida e o mundo pula e avança, como bola colorida, entre nas mãos de uma criança.”.