Mulheres. As minhas!

Mulher. São três na minha vida. Muito diferentes. Muito iguais.

A minha mãe. Um foguetão que chega em meia-dúzia de minutos à lua. Não sabe estar quieta. Nunca se cansa. Sobe, desce, corre, fura. Usa calças justas. Tem trinta mil cavalos nos saltos altos que calça. Têm motor. Levam-na a todo lado. Tem coração para setenta vidas. É um tambor. Bate sempre com muita força. A minha mãe tem Deus. Apesar de tudo.

A Ana. Linda. Esguia. Às vezes procuro-lhe um defeito. Cinco horas depois, desisto. Rendo-me. Tem sempre a palavra mais bonita. A que rima. A que fica. Tem olhos escuros. Cabelo preto. Pernas que nunca mais acabam. Tem menos quatro anos que eu. Tem mais quatro vidas que eu. Sabe tudo. Até cansa. Chama-se Ana. Uma capicua. É igual sempre. Não interessa por onde se começa. É sempre a mesma. Conhece a América. E o Mediterrâneo. E há-de conhecer o resto. Aliás, o resto há-de conhecê-la. Assim é mais justo. A Ana é piano. Que toca devagarinho. Que embala. A Ana não tem Deus. Nem pode. Não há ninguém maior que ela. Do que a minha irmã.

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A Elsa. Pausa para inspirar. A Elsa. Uma espécie de Deus. Simples. Boa. Olhos que falam. Lá, nos olhos, tem uma gramática inteira. É de longe. Às vezes, quando estamos perto, grita, com os olhos todos, para que eu fique. Com ela. No sítio dela. Que um dia há-de ser o nosso. Pausa para expirar.

A Elsa tem Deus. Eu não. Mas ela diz que Deus corre em todas as vielas do lugar que sou. É escuteira. É a bússola dos que vivem nela. Tem medo de voar. Mas tem um helicóptero nas pernocas. E uma pista de aviões quando fecha os olhos. Aterra em Barcelona. Sempre. Porque lá, o Sol, para ela, é mais amarelo. Não sei. Sou daltónico. Mas vou com ela.

Já tive mulheres de todas as idades. As minhas tias velhinhas.
Uma não lia. A outra só sabia escrever o nome. E mal. Mas sabiam a tabuada de cor. Porque na vida fazem-se contas. Três vezes nove vinte sete e vai um, vinte e oito Ou bintóito, como diziam.

Uma era leiteira. Levantava-se às três da manhã. Fosse Agosto ou Janeiro. E, enfiada em xailes, carapuços e galochas, lá ia, com um carrinho de mão. Que empurrava aos soluços. Enquanto os outros dormiam.

Casou-se, por procuração, aos trinta e seis, com um homem que tinha visto duas vezes. Que estava cá de férias. Disse-me, muitas vezes, que lhe tinha respeito. Que ele é que mandava. E que o primeiro beijo que lhe deu foi com muito respeito. E já em Luanda. Para onde foi ter com ele. Esteve lá um ano. Porque o marido morreu. Do nada! Era a Maria. Que me talhava o medo quando eu era pequenino. Que queria bater à minha professora, por me ter dito que a minha farda de cowboy era feia. A Maria. Que nunca tirou o luto. Que não sabia onde era o Brasil. Que dizia Grabiel em vez de Gabriel. Que dizia há-des em vez de hás-de. Que dizia salchicha em vez de salsicha. Mas que nunca se enganava a dizer o nome estrambólico dos meus medicamentos para a bronquite. A Maria. Que nunca tirou o luto.

A outra tia enrolava tabaco. Na Tabaqueira. Na baixa do Porto. Ia a pé. Sempre. Eram duas horas para chegar. Mais duas para voltar. Saía de noite e voltava à noite. Morreu com noventa e seis. E nunca foi a parte alguma. E nunca soube quem foi o Gandhi. E nunca soube que houve mulheres que fizeram uma Revolução para que mulheres como ela pudessem ter ido a alguma parte. Mas era assim.
O marido morreu trinta e cinco anos antes dela. Nunca tirou o luto. Nem o véu. E rezava todos os dias. À mesma hora. Vivia a minha vida E a da Ana. E nunca usou calças. Era pecado. Ou quase.

São estas as mulheres sobre quem posso escrever. As outras não. Porque não as conheço. E mulheres há muitas. Boas. Más. Assim-assim. Como os homens. Como tudo.

Mas a Mulher é Mãe. Se quiser, claro. E Mãe tem vida duas vezes. Dois corações a bater um pelo outro. Deus deve ser isso. Ou o mais próximo disso.

E nesse Deus eu acredito.

Crónica de João Nogueira