Mulheres e Videojogos – Parte 1: O Mundo Real

Todos os dias devem ser dias para celebrar a igualdade, mas é imperativo que neste Dia da Mulher sejam relembrados os séculos de luta que influenciaram a nossa sociedade e contribuíram para uma mudança, que hoje cada vez mais perto da harmonia no mundo Ocidental, devem inspirar uma vaga que se espalhe por todo o Mundo. Posto isto, é também necessário contribuir para a mudança de mentalidades por parte da comunidade gamer, e a minha crónica de videojogos deste mês no Ideias e Opiniões é um misto de curiosidades sobre a participação e representação das mulheres nos videojogos, baseados em estudos e experiências pessoais de 18 anos de contacto com este medium.

Esta crónica será dividida em duas partes, uma sobre o papel da Mulher na indústria e os desafios e os obstáculos na sua inclusão na comunidade gamer, e a segunda sobre a representação da Mulher no mundo virtual e como esta tem evoluído. Ambas têm como alvo todos os humanos, escritas por um homem porque a luta é de todos, e especialmente direccionadas para a sensibilização, numa tentativa clara de demover um discurso machista, baseado em conceitos que entram constantemente no campo da misoginia, muitas vezes derivados de indivíduos que se escondem por detrás de um avatar num qualquer mundo virtual ou fórum. Serve também para motivar qualquer mulher que alguma vez tenha sido afastada dos comandos ou do teclado a tomar parte activa desta mudança, num medium que nunca foi exclusivo, e que com o passar dos anos tem muito rapidamente mudado um pouco da sua orientação para acomodar todos os humanos, mesmo quando isso não é propriamente bem implementado, mas já lá vamos…

Voltemos aos anos 40 do século XX, para toda uma nova perspectiva…

É estranho estar a falar de videojogos e apelar a uma viagem no tempo ao final dos anos 40, perto do fim Segunda Guerra Mundial, mas a resposta vai começar a ser evidente muito em breve. A indústria de videojogos está evidentemente ligada a campos como a engenharia informática, programação, etc. Hoje em dia basta visitar uma qualquer universidade para perceber que muitos dos cursos que lidam nestas matérias são maioritariamente “masculinos”, e podemos justificar este facto a várias ideias erradas que transformaram muitas destas áreas num boys’ club, aliadas a um conjunto de estereótipos que no panorama actual não fazem sentido, até para os próprios aspirantes a programadores, mas que deixaram uma marca vincada que tarda em morrer. Tudo isto parece partir da incapacidade da sociedade para quebrar as correntes dos actuais papéis sociais de género, e aí começa a receita para uma exclusão que não tem qualquer base histórica.

Explicado o problema, lá vamos nós de DeLorean até finais dos anos 40. O primeiro grande desafio é procurar um programador, tendo em conta que os únicos computadores, e dizer no plural é optimista, ocupavam todo um armazém, o segundo desafio é procurar um programador que não seja uma mulher. Sim, ouviu bem! Em 1940, o papel da mulher na sociedade poderia estar no meio de uma lenta e tardia revolução, mas o papel de programador estava directamente relacionado com o sexo feminino. Porquê? Surpreendentemente, devido a sexismo! Para ironia das ironias, as mulheres ocupavam o lugar de programadoras porque a sociedade controlada por homens achava que tal ofício se relacionava com a dactilografia, um trabalho na altura exclusivo do sexo feminino. Os homens construíam as máquinas, tratavam de toda a engenharia e circuitos, e a mulheres com um grande conhecimento matemático programavam todo o sistema.

Não se pense, no entanto, que o trabalho era fácil, os primeiros computadores não só eram gigantes calculadoras como tinham milhares de peças. Particularmente os primeiros computadores digitais como o ENIAC avariavam e queimavam devido às elevadas temperaturas todo o santo dia, e no meio de 19 mil peças num gigante armazém, encontrar as falhas podia demorar mais tempo do que o próprio período de funcionamento de todo o equipamento. As melhorias concretizadas pela equipa de programação deste computador influenciaram para sempre toda a tecnologia que se seguiu, ou seja, devemos ao trabalho de várias mulheres a base daquele PC que temos como garantido em nossas casas.

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Homens a programar este menino? Eles nem conseguem mudar as lâmpadas lá de casa!

Mas as surpresas não acabam aqui: o primeiro programador de computadores não era um ele, mas uma ela, Condessa Ada de Lovelace que sensivelmente a meio do século XIX organizou uma série de cálculos matemáticos e teorias que permitiriam a construção de uma máquina de cálculo. Mais surpreendente ainda foi ter teorizado que  um dia essas máquinas poderiam não só processar números mas também palavras, imagens e música. Infelizmente as tentativas de criação dessa máquina de cálculo falharam na época e o seu esforço só seria reconhecido nos finais dos anos 70 do século XX, quando um grupo de programadores baptizou a sua linguagem de programação de ADA.

Mas falando da indústria de videojogos, muitas foram as mulheres responsáveis pela evolução da indústria ainda nos anos 70. Carol Shaw foi a primeira mulher programadora e designer de videojogos. Roberta Williams co-fundou a companhia Sierra e programou muitas das suas aventuras gráficas até ao final dos anos 80. Amy Briggs criou a primeira aventura de texto direccionada a um publico feminino. E Doris Self foi a mais velha jogadora competitiva do Mundo, quebrando o recorde mundial de Q*Bert nos anos 80, já com 58 anos.

Com todas as informações já ilustradas é difícil perceber onde tudo resvalou para o cenário que temos hoje, mas há uma causa que deve ser analisada. A mudança de uma maioria de programadoras do sexo feminino para uma maioria de sexo masculino tem como principal responsável a estratégia de marketing utilizada nos anos 80 para publicitar a chegada dos personal computers (PCs). Voluntariamente ou involuntariamente os primeiros PCs foram vendidos como se de um brinquedo se tratasse, e quase todos, senão mesmo todos, faziam questão de apresentar rapazes como o publico alvo. Podemos também juntar a isto a representação do nerd pela televisão e pela indústria de Hollywood, um individuo do sexo masculino, com óculos e camisinha branca. Esta associação entranhou-se na nossa cultura e criou um distanciamento, que excluiu e desmotivou uma geração inteira, que acabou por passar ao lado de uma indústria que devia muito ao sexo feminino.

As estatísticas

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Gráfico desenvolvido pela Quartz que também destrói o estereotipo da atribuição de cores

Nos EUA, e nos últimos 23 anos, a percentagem de mulheres a trabalhar nas área das ciências de computação tem caído exponencialmente. Se em 1990, o valor encontrava-se nos 35%, em 2013, situava-se nos 27%. Mas passando mais especificamente à indústria de videojogos, os números recentes são mais animadores, especialmente porque esta não vive apenas de programadores mas de argumentistas, designers, ilustradores, etc. Em 1989, a revista Variety estipulou que as mulheres constituíam apenas 3% da indústria, mas saltando para 2014, e usando pesquisas mais recentes, a realidade é bastante diferente. Embora a indústria continue a favorecer o sexo masculino estipula-se que em 10 anos a representação das mulheres seja de 50%. Outro facto surpreendente é que a profissão de designer para videojogos nos EUA é aquela que tem a menor diferença de salários entre homens e mulheres.

E se as estatísticas são animadoras em termos de produção e desenvolvimento de títulos na indústria o mesmo se pode dizer do número de mulheres que efectivamente jogam videojogos. As estatísticas recentes referem que 52% dos gamers são mulheres. Mas este número é muitas vezes descredibilizado devido a um falso problema que parece atormentar muito harcore gamers. A chegada dos jogos para telemóvel parece ter sido um dos responsáveis por este boom da representação feminina no universo dos jogadores. E neste ponto começa uma disputa ideológica sem sentido que tem na sua base um misto de elitismo e sexismo que não dignifica a indústria nem os jogadores, e que parte da incapacidade para responder correctamente a uma simples pergunta…

O que é um gamer? E mais concretamente, o que raio é uma gamer girl?

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O humor acutilante de South Park explorando os estereótipos relacionados com os gamers

É sempre certo que cada vez que um novo termo surge há todo um grupo de pessoas que se identifica com ele e que o molda aos seus padrões e ao seu “moralmente aceitável” delimitando-os de forma a impedir que seja posto em causa. Se há um caso flagrante nesta questão é o termo gamer, que embora tenha vindo para juntar um grupo de pessoas com interesses em comum depressa se fechou, porque quem joga o jogo x ou y “não é gamer”.

Gamer define uma pessoa que joga um jogo ou vários jogos como hobby. Um termo simples e aparentemente directo que não deveria levantar qualquer tipo de dúvida ou incentivar à exclusão. No entanto, há alguma falsidade e elitismo na sua aplicação, que infelizmente tem sido usado por algumas pessoas para se auto-promoverem e denegrir a entrada, ou pelo menos descredibilizar a nova vaga de jogadores do sexo feminino e em geral, a nova vaga de jogadores casuais, o que abrange todos os sexos.

Há dois problemas principais que podem partir de dois estereótipos, o primeiro dita que quem joga jogos como Candy Crush, ou outro tipo de jogo casual no telemóvel ou pelo facebook, não é gamer. O segundo parte na afirmação falaciosa que as mulheres que jogam alguma coisa jogam de forma casual no facebook, logo as estatísticas que afirmam que existem 52% de gamers do sexo feminino é falaciosa porque não é selectiva face ao termo. Quem descredibiliza esta nova vaga de jogadores está a tomar um conceito como seu. Estes indivíduos parecem reforçar que um gamer tem de passar 18 horas à frente de um computador e ter todos os achievements daquele jogo que demorou 100 horas a concretizar. Esta ostentação, que funciona quase como um título para certos indivíduos, é apenas uma demonstração de elitismo, que acaba por influenciar o seu comportamento não só fora dos jogos mas também dentro deles.

Sendo gamer um termo que não dá qualquer bonificação social, ou qualquer desconto no cinema ou no preço da gasolina, é da responsabilidade de cada um proceder à auto-proclamação do seu título como bem entender, sem ser criticado ou descredibilizado. Se alguém que joga FarmVille durante uma hora por dia fizer questão de dizer “Eu sou gamer!” está no seu direito.

Mas o problema não acaba aqui, a monopolização do termo gamer foi absorvido pela indústria e segmentado pelas comunidades em pequenas parcelas. Temos o hardcore gamer, o casual gamer, o gaymer e a female gamer ou gamer girl, etcÀ primeira vista a segmentação parece dar identidade a um grupo de pessoas, o que nunca é mau, até olharmos objectivamente para a exclusão e divisão que estes termos têm trazido. Nunca ninguém se referiu a um gamer do sexo masculino como male gamer, e isso diz muito sobre o objectivo por detrás da terminologia.

Pela internet fora, muitos são os comentários e memes sexistas que usam a divisão entre gamers e female gamers para alimentar uma certa agenda, criando o estereótipo que define a female gamer como uma rapariga sexy sem cérebro, que está apenas à procura de atenção. Muitos destes estereótipos ganharam força devido à estratégia de alguma streamers do Twitch, que fazem transmissões com menos roupa de forma a atrair o publico masculino (uma nova regra proíbe streaming de roupa interior ou tronco nu para ambos os sexos de forma a combater esta tendência). No entanto, para ironia das ironias, muitas desta mulheres streamers percebem melhor do negócio do que muitos gamers pensam, uma vez que isso traz bastantes subscrições e dinheiro. A pergunta fica: Quem terá falta de cérebro nesta situação?

A divisão entre gamers também causa vítimas a nível competitivo no que toca a sexo. Alguns jogos mantém uma divisão que apenas faz sentido nos Jogos Olímpicos mas que falha em perceber a realidade como um todo. O caso mais flagrante dos últimos tempos passou-se num campeonato finlandês de Hearthstone, um jogo de cartas da Blizzard baseado do universo de Warcraft, quando foi interdita a participação de gamers do sexo feminino. A organização alegou que esta interdição partia de possíveis problemas na qualificação dos jogadores para a fase seguinte, o campeonato internacional. Caso uma mulher ganhasse a um homem, e sendo o panorama internacional limitado a jogadores masculinos seria impossível a representação finlandesa na competição.

Num desporto dito “normal” a divisão entre campeonato feminino e masculino acontece quando existe uma clara diferença entre sexos no que toca a fisionomia, resistência, etc. Embora seja subjectivo, acaba por tornar a competição mais justa. Agora quando falamos de um desporto que no geral envolve um teclado, um rato, ou um comando, e um cérebro funcional é estranho que este cisma se mantenha. Neste aspecto a indústria dos videojogos e do espectáculo está a usar conceitos desportivos que não se aplicam verdadeiramente, e pior, está a excluir todo um grupo de gamers que claramente tem as mesmas capacidades que qualquer outro jogador. Embora existam equipas femininas, o número de jogadoras profissionais é ainda uma percentagem muito pequena comparada com os seus pares masculinos.

No entanto, as coisas estão a melhorar…

Ao longo de 18 anos a jogar videojogos presencia-se muita coisa. Em 2007, uma simples personagem de World of Warcraft fez-me entrar por acidente numa experiência social directa com aquilo que mulheres gamers por todo o mundo podem passar. Criei, pasme-se, uma personagem do sexo feminino no MMORPG mais popular do mundo. Pode parecer algo sem importância, uma vez que é recorrente acontecer, um RPG dá ao jogador uma oportunidade única de explorar raças diferentes, sexos diferentes e até personalidades diferentes, mas naquele momento assumiu um significado totalmente diferente para um jogador que partilhava o mesmo espaço comigo. O afável jogador ofereceu mundos e fundos para me ajudar em qualquer quest que aparecesse, o que não é obrigatoriamente mau, até à conversa mudar de figura ao ponto de ter de lhe dizer simplesmente “Sou um homem!” e acabar assim com a amabilidade do jogador, que virou costa e foi à sua vida sem mais nenhuma palavra.

É errado pensar que todos os humanos pensam da mesma maneira, mas este individuo que julgou que eu era uma mulher na vida real, apenas porque criei uma personagem feminina, representava um pensamento que embora menos recorrente existia em demasia em 2007, de que uma mulher precisa de ajuda para vingar num videojogo e que essa ajuda poderia trazer qualquer bonificação para o próprio, possivelmente até sexual. Há certamente pessoas afáveis que gostam de ajudar em qualquer videojogo online e as águas devem ser muito bem separadas, mas esta ajuda não deve cessar porque descobrimos o sexo da pessoa que está do outro lado.

Em 2007, muitos jogadores de World of Warcraft aproveitavam também o facto de poder fazer-se passar por mulher de forma a conseguir pedir dinheiro numa qualquer cidade principal do mundo virtual, normalmente em roupa interior para cimentar um qualquer fetish que envolva pixels. Se esta prática era viável, nunca saberemos, mas existia, e neste caso concreto, os próprios gamers aproveitavam-se da ignorância de outros, e no exótico que parecia na altura a existência de uma mulher a jogar um MMORPG, para arrecadar algumas moedas de gold. Hoje a situação é claramente menos recorrente se é que existe de todo. Há com certeza jogadores a pedinchar por dinheiro nas ruas de Orgrimmar, mas o último que encontrei era um saudoso e gigante Tauren.

Quando jogamos um qualquer jogo online há uma grande tendência para pensar que do outro lado está um gamer do sexo masculino, mas a realidade é que muitos jogadores não facultam o seu sexo ou a sua identidade sexual durante uma qualquer sessão de Counter-Strike ou Team Fortress. Também não ajuda a atitude de alguns jogadores quando por algum motivo um dos seus companheiros de equipa acaba por revelar-se como mulher. Há 5 anos isso poderia significar um qualquer comentário sexista, hoje a situação parece um pouco diferente até porque muitas mulheres tem mais representação em videojogos antigamente apelidados de “jogos de homens” ou “hardcore”.

Hoje em dia, jogar contra, ou com, uma gamer no Counter-Strike é um fenómeno de maior recorrência, e essas mesmas mulheres provam que podem jogar qualquer coisa aos mais descrentes. A ideia de que uma mulher tem menos habilidades no mundo virtual ou precisa de ajuda para entender todas as mecânicas de um jogo é neste momento fácil de deitar por terra, não porque o sexo feminino precisasse sequer de mostrar alguma coisa ao masculino, mas porque muda consciências e contribui para uma maior inclusão. Ser vencido por uma mulher também não deve ser considerado um sinal de fraqueza ou menos virilidade, afinal de contas há sempre um humano que é melhor que nós a jogar, seja de que sexo for.

Podemos dizer que a luta pela afirmação das mulheres no mundo dos videojogos não se faz com sangue, pelo menos real, até percebermos que aquela gamer fez um Pentakill no League of Legends, um ace no Counter-Strike, ou teve o dps mais alto daquela raid no World of Warcraft. Nenhuma delas será a partir desse momento subestimada com facilidade e isso serve para futuros encontros com o sexo feminino, e para a futura geração de gamers. Muitas mulheres hoje em dia não só jogam activamente como estão a demonstrar interesse e a concretizar os seus sonhos fazendo parte activa da indústria, mas também dos consumidores seja em que plataforma for. Apenas tempo poderá restabelecer o equilíbrio necessário para que todos possam ser incluídos, não só quem partilha um sexo diferente, mas também um género ou identidade sexual.

A Parte 2 sairá na próxima semana e irá explorar a representação da mulher no mundo virtual, com a evolução da construção das personagem do sexo feminino e os esforços da industria para evitar personagens unidimensionais e sexualizadas!